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Crítica | A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos, de Clarice Lispector

por Luiz Santiago
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[…] é aquela que na verdade a ninguém se deu, e agora é toda nossa.
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Única peça teatral de Clarice Lispector, A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos foi escrita em 1948, enquanto ela esperava o seu primeiro filho. Na época a autora morava em Berna, Suíça, e meio que por acidente resolveu escrever uma peça em único ato, desfrutando imensamente o prazer de explorar o estilo, mas na mesma intensidade, desgostando da qualidade da obra, tanto que em vida, só a publicou em Fundo de Gaveta, segunda parte da edição inaugural de A Legião Estrangeira (1964).

A pequena peça conta com várias camadas, sendo a exterior uma alegoria da nossa sociedade, exibida em um drama de adultério desenhado em linha clássica (as influências de Édipo Rei são facilmente perceptíveis), além dos autos morais do século XV, onde as relações de poder e os comportamentos sexuais — leia-se, o comportamento sexual de uma mulher julgado por três homens e pelo povo — são misturados a uma tragédia de grande profundidade.

No início temos anjos invisíveis apresentando-se, falando de sua jornada, missão, procura e fé no acontecimento de determinadas coisas. É um jogo, claro, mas isto irá se revelar completamente apenas no final. Sem julgo, sexo biológico ou maiores intenções, esses seres celestiais caminham para nascer. E de fato o farão quando o pecado da mulher jamais nomeada, e que jamais pronuncia palavra (ela apenas ri), tem sua carne queimada para o prazer duplo daqueles que a julgam. Ali estava o castigo para a pecadora e a visão do que eles denominam como “carne assada” e “marcada pela Salamandra”, duas figuras de simbolismo amplo: a primeira, de cunho sexual, misógino e [sado]masoquista, e a segunda, derivada desta e imbuída do destino de punição, pois a Salamandra consta em certas mitologias como “moradora do fogo” e também é considerada na Bíblia (11º Capítulo do Levítico) como um animal impuro. Façam aí as relações do “destino social e divino da mulher” que a autora ironiza nessas simples frases.

Para destacar a impessoalidade dos que julgam, Clarice Lispector não dá nome aos personagens. Eles são Amante, Esposo, Pecadora, Criança com Sono, Mulher do Povo, Povo (que personifica o Coro), Sacerdote, Anjos Invisíveis, Anjos nascendo/nascidos, 1º e 2º Guardas. Talvez para tornar claras as posições hierárquicas dessa sociedade e os diferentes tipos de pessoas que acabam percorrendo caminhos onde morte, diminuição e condenação dos atos (íntimos) do outro devem acontecer para que se garanta a limpeza do meio e a ética local, a autora não poupou riqueza na intertextualidade, explorou caminhos onde a linguagem e a palavra têm papel primordial nas formas de se ver a condição feminina e fincou pé na necessidade do silêncio e nos prazeres do isolamento físico e mental.

A influência bíblica aqui ressalta o fator social viciado, fixado em algo que julga ser certo e que quer fazer valer para todos, mesmo para os que não acreditam em seus deuses e padrões de conduta. De maneira sutil e inteligente, as falas vão revelando o pensamento cristalizado de como ‘a feminilidade é perigosa’ (o mito de Eva) e constantemente leva o homem à queda. O amante e o marido são colocados como princípios racionais. Há, porém, uma deixa da autora para olharmos o marido de forma mais crítica, devido ao seu arrependimento de ter denunciado a mulher, mas a manutenção da postura social rija, com a aceitação de que “a pecadora” nunca lhe pertenceu. Agora, muito menos. Ela é do povo.

Dos homens, o personagem mais rico é, curiosamente, o Sacerdote. Desde o começo vemos que ele se digladia entre obedecer a um dever divino e ao mesmo tempo pecar, matando uma mulher que buscou prazer com duas pessoas diferentes. O Sacerdote não muda a sua visão de que a mulher cometeu um “pecado da carne”, mas — e isso é tremendamente poderoso — questiona Deus e os dogmas que ele obedece, de alguma forma se colocando no lugar da mulher. Ao final, seu medo é tamanho, que mesmo machucado por dentro ele prefere que a fogueira seja logo acesa e que “a voz da mulher seja a morte”. É melhor isto do que ouvir o que a mulher possivelmente teria a dizer. Sim. A mulher com palavra causa medo em seus algozes sociais, daí o impulso de querer silenciá-la a todo custo.

Cada personagem tem um tipo de mantra destacado pela autora. Grafadas em maiúscula, as palavras “Vingança” (ligada ao marido), “Virtude” (ligada ao Sacerdote) e Salamandra (ligada ao povo) servem como um ponto de fuga para a exteriorização moral e sentimental de cada parte. A harmonia tão procurada pelos anjos era a sua morte, que curiosamente coincide com a passagem desse seres celestiais de “invisíveis” para “nascidos”. Com a morte da pecadora, o mundo voltou a tocar as mesmas notas “harmônicas” da mulher silenciada, da obediência, da conduta guiada por alguns e observada por todos, prontos para apontar o erro e condenar. Cínica, crítica e ácida visão para uma tão inocente harmonia divina em um mundo que só está “muito bom” enquanto continuar funcionando sob o ódio às ações individuais alheias. Aos transgressores dessa ordem, a fogueira. E então, novamente, a harmonia hipócrita voltará a reinar.

A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos (Brasil, 1948)
Autora: Clarice Lispector
Consta [também] em: Clarice Lispector: Todos os Contos, Ed. Rocco, 2015
15 páginas

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