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Crítica | A Pequena Loja da Rua Principal

por Guilherme Almeida
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A Nouvelle Vague Tcheca, também conhecida como Nová Vlna, foi um momento de libertação artística do país, contexto em que floresceu um estilo cinematográfico mais espontâneo, anarquista, surrealista e questionador. Se durante os anos 50 a filmografia era mais restrita aos filmes de estúdio, com dramas tradicionais e maiores orçamentos, a vanguarda da década seguinte preferiu os atores não profissionais, menores custos e uma inquebrantável liberdade de expressão. Diretores da estatura de Vera Chytilová (As Pequenas Margaridas), Voytech Jasný (Um Dia, Um Gato) e Milos Forman (O Baile dos Bombeiros) prefiguraram na arte a vaga subversiva que se realizaria politicamente com a Primavera de Praga (1968).

Mas dois diretores mais antigos, figurões da geração anterior, produziram neste mesmo período uma verdadeira obra-prima que, embora não se encaixe exatamente no perfil dadaísta da Nová Vlna, aproveitou a atmosfera questionadora do momento para lançar um libelo contra todo tipo de autoritarismo. Ján Kadár e Elmar Klos são os responsáveis pelo tocante A Pequena Loja da Rua Principal (1965), película vencedora do prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar de 1966. A trama se passa na Tchecoslováquia ocupada pelos nazistas (que invadiram a região em 1938, após o Pacto de Munique), durante os anos de 1941 e 1942, no meio da Segunda Guerra Mundial, portanto.

Tony Brtko (Jozef Kroner) é um carpinteiro bondoso, ingênuo e orgulhoso, que não aceita o domínio ditatorial infligido contra o país, mostrando-se resistente em participar da construção do monumento nazista no meio da cidade e se submeter aos desmandos do poder para conseguir privilégios para si e sua esposa, a ambiciosa Evelyn (Hana Slivková). Quando Mark, o oficial nazista cunhado de Tony, propõe que ele seja o “arianizador” de uma loja cuja proprietária é judia, o protagonista vê-se num dilema: se aceita a proposta, acaba chancelando a desumanidade do regime; se não aceita, continua na penúria e abre espaço para um outro joguete da polícia política gerir o estabelecimento, quiçá de maneira violenta contra sua antiga dona. Ao longo de todo o filme, o comportamento de Tony estará nesse fio da navalha. Pessoalmente, seu caráter humanista sente ojeriza por todo jogo de poder, mas nas aparências ele deve fingir que, de fato, tomou a loja da senhora Lautmann (Ida Kaminska). Por baixo dos panos, o carpinteiro a ajuda nas vendas e ainda reforma os móveis já envelhecidos da casa anexa ao comércio, ganhando seus rendimentos com o apoio da comunidade judia da região.

Nos primeiros contatos entre os personagens, prevalece o tom humorístico, em primeiro lugar porque Ida Kaminska constrói uma idosa surda e alheia à História, que sequer sabe do avanço nazista, da guerra ou do programa de extermínio de judeus. A narrativa se aproveita dessa limitação da personagem para gerar efeitos cômicos, mas sem nunca ridicularizar a situação. Como em A Vida é Bela (1997), temos aqui uma figura pura que pouco compreende do horror do contexto, surgindo desse fator a maioria das peripécias da trama. Se o tom leve é demarcado pela amenidade da relação entre ambos até o fim do segundo ato, bem como por uma trilha circense e divertida, as coisas vão piorando pouco a pouco, com muita sutileza e solidez, construindo-se uma notável virada de tom que faz lembrar Durval Discos (2002).

A pax de Tony começa a ruir quando se inicia um programa de transferência forçada dos judeus e ele tem que decidir o que vai fazer. Salvará Lautmann, como se fosse um personagem de A Lista de Schindler? Ou livrará a própria pele, delatando-a sem arranjar problemas com o regime? A indecisão é pungente e consome, com violência, todo o terceiro terço do filme. A esta altura, começa a se adensar uma trilha mais aguda, ao som de violinos cortantes e cantos monocórdicos que estabelecem o suspense; a fotografia de Vladimír Novotný, até então naturalista, ganha contornos de expressionismo, explorando as sombras para refletir a angústia da situação; a direção, que fora mais ou menos estabilizada até o ápice, explode em movimentos bruscos e angulações expressivas. Todos os elementos formais da obra disparam a urgência da aporia, preparando uma experiência estética que surpreende pela simplicidade e poder. Acima de tudo, Ida Kaminska (nomeada ao Oscar) e Jozef Kroner sustentam o enredo com segurança, formando uma dupla tragicômica que torna superlativas as já muitas qualidades do filme.

A Pequena Loja da Rua Principal é um brilhante estudo de personagem que coloca em debate questões éticas fundamentais, como a submissão e a rebelião, bem como o conflito entre princípios morais e interesse pessoal, aproveitando para denunciar, subterraneamente, o controle ditatorial da URSS nos anos 60. Não à toa são profusos os enquadramentos que incluem espelhos, elementos cênicos que duplicam os personagens (apontando para a já citada ambivalência de tom que marca o entrecho) e que, sobretudo, sempre mostram cristalinamente as pessoas, como se cada uma devesse se escrutinar e ver o cabimento ou não de cada uma de suas escolhas. Quem já assistiu Alemanha, Ano Zero (1948), encontrará, no final da obra-prima de Kadár e Klós, um correlato original da desconcertante dureza do neorrealista Rosselini.

A Pequena Loja da Rua Principal (Obchod na korze)- Tchecoslováquia, 1965.
Direção: Ján Kadár, Elmar Klos
Roteiro: Ladislav Grosman, Ján Kadár, Elmar Klos
Elenco: Ida Kaminska, Jozef Kroner, Hana Slivková, Martin Holly, Adam Matejka, Frantisek Zvarík, Martin Gregor, Mikulás Ladizinský
Duração: 128 min.

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