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Crítica | A Peste, de Albert Camus

por Anthonio Delbon
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No calor e no silêncio, e para o coração em pânico dos nossos concidadãos, tudo assumia, aliás, uma importância maior. Pela primeira vez, todos se tornavam sensíveis às cores do céu e aos odores da terra causados pela mudança das estações.

Dramaturgo, ensaísta, romancista ou filósofo. Para além dos títulos e do Nobel recebido em 1957, o franco-argelino Albert Camus trouxe no coração de sua obra os temas do absurdo e da revolta, conceituados filosoficamente em obras como O Homem Revoltado, mas transfigurados em literatura de extrema qualidade em romances como A Peste. Ainda que tais conceitos tenham sido gastos em tantas décadas de falatório acadêmico e popular, a relevância de Camus e de sua abordagem persiste à medida que sua preocupação rasga os modelos filosóficos e ideológicos tradicionais – como o existencialismo e o comunismo – para focar no problema do suicídio, uma questão que se inicia no coração – como toda boa filosofia – e gera uma fecunda investigação racional.

Se as ilustres primeiras palavras de O Mito de Sísifo destacam que o suicídio é o único problema filosófico realmente sério, é possível ver em A Peste o mesmo rigor com tal questão, permeada, por sua vez, de nuances literárias das mais aprazíveis: descrições psicológicas honestas, realismo em personagens palpáveis e ar sufocante transpirando das palavras do escritor argelino, que pinta um cenário igualmente quase irrespirável na cidade de Orã, assolada por uma peste transmitida por ratos. Tendo no Dr. Bernard Rieux o fio condutor das transformações pelas quais a cidade passa – e que só são devidamente sentidas por serem encarnadas em coadjuvantes tão notáveis – Camus joga com o absurdo da situação provocada pela peste para mostrar o absurdo da própria condição de existir neste mundo. É nesta tensão constante, insolúvel, entre homem e mundo, que se delineiam outros tipos camusianos: o homem absurdo, na figura de Rieux, e a sua revolta, a “verdadeira” revolta, aquela caracterizada por Camus em O Mito de Sísifo como certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanha-la. A revolta que faz Sisifo empurrar a pedra eternamente é a mesma que exige a permanência de Rieux no meio da Peste, convicto ao redor de um mar de homens tentando fugir, ansiosos por um paraíso, aflitos por uma saída.

Os outros dizem: “É a peste, tivemos peste.” Por pouco, pediriam que os condecorassem. Mas o que quer dizer isso, a peste? É a vida, nada mais.

Tendo no absurdo o ponto claro de partida das reflexões que propôs, Camus, em sua genialidade, teceu um conjunto de forte densidade filosófica, desenhado sem o hermetismo típico de um, digamos, Jean-Paul Sartre, seu contemporâneo e amigo, até certo ponto. Para quem conhece as outras obras do escritor, ler A Peste pela primeira vez é como uma aula de cuidado literário, de ritmo e criação de um mundo, de descrições viscerais de tão secas, mas ornamentadas quando se pede. O mais recomendável, todavia, é ler A Peste, ou O Estrangeiro – cujo acontecimento principal é citado rapidamente aqui – por exemplo, sem ter contato com a “filosofia” camusiana: trata-se de se deixar levar pela pergunta, aguentar a provocação e leva-la ao abismo para ver o quanto se pode sustentar a condição humana dissecada esteticamente por Camus.

O narrador onisciente, à primeira vista, traça frases curtas ditando o tom leve, por vezes sarcástico e, ao mesmo tempo, pleno. Digo pleno pois a narração, como relato posterior à peste, parece saber exatamente o que quer passar, por quais meios e com quem. Pontuando e exclamando claramente as diversas fases da epidemia durante as cinco partes do romance, Camus descreve desde o início do problema, com os “humanistas” desconfiados, livres em demasia para depositar fé nos flagelos, até o momento do verdadeiro caos aparecer comum a todos, quando o exílio na cidade e a separação dos entes queridos parecem se tornar permanentes, assim como a desesperança em reencontrá-los. Construindo lentamente seu edifício, o filósofo chega à futilidade que o tédio traz, à sensação de abandono que a distância forçada do tempo faz ressoar na alma, como se a peste fosse apenas aquele empurrãozinho final para chegar à beira do abismo, deixando para trás as banais máscaras de qualquer tipo de esperança.

Era preciso apenas começar a caminhar para a frente, nas trevas, um pouco às cegas, e tentar praticar o bem.

Dos diversos personagens que cruzam o caminho de Rieux, – e há alguns com fascinantes perspectivas, como Jean Tarrou –, destacaria dois. Raymond Rambert, jornalista preso na cidade devido à praga e idealista obstinado em voltar para sua amada, e o padre Paneloux, figura que, assim como padre no fim de O Estrangeiro, encarna a pobreza de espírito ético-religiosa da qual Camus ri – no caso, por meio da descrição de um sermão longo e demorado que traz uma imagem patética sobre o flagelo – sabendo que, em seu ímpeto estético, o próprio escritor conseguiu tratar melhor da metafísica do que tais figuras jamais conseguiriam na vida em carne e osso. Nas duas figuras, enfim, Camus demonstra a maestria de, com paciência, criar dois estilos que evoluem ao longo dos sutis diálogos para uma crítica ambulante, direcionada, escancaradamente, às atitudes perpetuadas por homens como eles, com vetores tresloucados em face do absurdo que se apresentou.

Gradativamente sufocando seu leitor, o romance vai fundo nos meandros das relações expondo o nervo do vazio, sem afetações normalmente associadas aos tipos nietzschianos mais alegres quando tratam de levantar tais questões. Há, sem dúvidas, influência de Nietzsche nos escritos do autor argelino, assim como há de diversos outros autores, mas o otimismo final de Camus é amargo – não deixando de ser otimismo, que fique claro: A única maneira de juntar as pessoas ainda é mandar-lhes a peste. A monotonia restringe a existência ao presente, matando até o amor que exige um pouco de futuro. Mas a conclusão final cai na luta. Não na revolucionária contra a pobreza da existência, pois o problema está longe de ser político. Trata-se da luta revoltosa, no sentido peculiar que o autor dá ao termo e que deve ser bem compreendido para entender o cerne do que se pode chamar de uma filosofia camusiana, distinta do existencialismo tradicional da primeira metade do século XX.

Chegava sempre um momento em que nos dávamos conta claramente de que os trens não chegavam. Sabíamos, então, que a nossa separação estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros(…)

Rieux, nesse sentido, serve como exemplo positivo, ativo do que é o chamado homem absurdo, pois mostra a dificílima tarefa da ascese absurda enquanto contempla, no olho de um furacão, o próprio furacão. Suas vitórias são efêmeras, sua derrota é interminável, sua miséria constante. O combate à peste, como cumprimento de seu dever como médico, não deve ser admirado. Nas entrelinhas camusianas, é essa a simples ação consequente que o raciocínio absurdo traz. Nada mais. Rieux compreende e essa é a sua moral.

O que é natural é o micróbio. O resto – a saúde, a integridade, a pureza, se quiser, é um efeito da vontade, de uma vontade que não jamais se deter. O homem direito, aquele que não infecta quase ninguém, é aquele que tem o menor número de distrações possível. E como é preciso ter vontade e atenção para nunca se ficar distraído! Sim, Rieux, é bem cansativo ser um empestado. Mas é ainda mais cansativo não querer sê-lo.

A Peste (França, 1947)
Autor: Albert Camus
Tradução: Valerie Rumjanek
No Brasil: BestBolso
291 páginas

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