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Crítica | A Pior Pessoa do Mundo

Desafiando expectativas.

por Ritter Fan
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Em determinada altura de A Pior Pessoa do Mundo, filme narrado em um prólogo, 12 capítulos e um epílogo, Julie, a protagonista vivida por Renate Reinsve, desafia os limites do adultério ao entrar em um jogo espontâneo e inequivocamente sensual com Eivind (Herbert Nordrum), que ela conhece em uma festa de casamento em que ela penetra de supetão. Esse é, diria, o momento em que Joachim Trier mais claramente olha para o espectador e o desafia a receber sua obra como uma inteligente e provocadora subversão da comédia romântica, com todos os tropos esperados sendo colocados de cabeça para baixo, mas sem nenhum diálogo ou cena forçada e sem qualquer momento didático.

Na verdade, não sei se eu sequer classificaria o longa como uma comédia romântica, primeiro por não gostar muito desses rótulos, segundo porque esse rótulo em especial costuma me afastar e não me aproximar de filmes e, finalmente, por A Pior Pessoa do Mundo ser muito claramente mais do que apenas isso. Em sua base, existe uma mulher vivendo sua vida, vida essa perfeitamente relacionável por muito mais gente do que as roupagens mais binárias de grande parte das chamadas romcoms por aí tornam possíveis. Renate não sabe o que quer ser. Antes disso ainda, sequer sabe de verdade quem ela é. Isso o prólogo já sacramenta ao mostrá-la trafegando por faculdades, sem conseguir firmar-se em nenhuma por escolha própria ou, talvez melhor dizendo, incapacidade de escolher.

Mas não incapacidade no sentido negativo da palavra, pois Renate é perfeitamente capaz. Aqui, a palavra deve ser compreendida como um misto de imaturidade (quantos de nós somos forçados a determinada situação antes de estarmos prontos para ela?) e aquela vontade genuína de simplesmente viver a vida sem seguir um rumo pré-determinado (quantos de nós não queremos isso e simplesmente não podemos em momento algum da vida?). Isso a leva a relacionamentos variados sem conexão maior e a empregos, não uma profissão até que ela passa a namorar e a viver com o cartunista Aksel (Anders Danielsen Lie), mais velho do que ela e a trabalhar em uma livraria. É a partir desse ponto que o filme concentra seus esforços para tecer uma narrativa engajadora que coloca em choque as vontades de Julie e Aksel.

Só que o roteiro, co-escrito por Trier e Eskil Vogt, apesar de ostensivamente utilizar o recurso da dúvida sobre ter ou não filho como elemento fundamental, não faz isso de maneira banal e também não se limita a esse aspecto. Sim, a diferença de idade no casal tem peso nessa conversa séria, nessa decisão difícil, mas as pequenas coisas que gravitam ao redor das grandes também se fazem sentir com bastante constância, ainda que a dúvida sobre engravidar comande a atenção. Aksel, querendo ou não, por mais boa vontade que ele possa ter e por mais que seus sentimentos sejam genuínos, representa, no final das contas, um caminho pré-determinado para Julie. Afinal, um casal, para ser casal, precisa estar disposto a uma união de pensamentos pelo menos, união essa que, mesmo não sendo constante, porque isso seria impossível, pelo menos precisa existir em termos macros. Mas Julie não quer trafegar por essa estrada. Ela sequer tem certeza de que quer seguir por alguma estrada.

E ela não é a pior pessoa do mundo por não querer trafegar por essa estrada ou por não saber exatamente o que quer. Ela é um espírito livre e curioso que, como muitos de nós, talvez não tenha interesse em escolhas rígidas e, no caso da gravidez, irreversível depois que a criança nasce. Se ela pode se arrepender depois por essa ou aquela escolha? Claro, sem dúvida alguma. Mas o depois é o depois e ele será encarado quando chegar o momento. Esse, aliás, parece ser o mote de Julie que, porém, não significa que ela é uma pessoa irresponsável, pois muito claramente não é. Ela vive no momento e, se isso pode ser difícil para muita gente compreender (e em vários casos sendo até impossível por uma questão de segurança financeira), para Julie parece ser a única forma de encarar a vida.

Trier revela-se muito delicado e invisível em sua abordagem. Sua direção não se intromete na narrativa em momento algum e faz o que ele de melhor poderia fazer: entrega toda a responsabilidade pelo sucesso da história que quer contar no colo de Renate Reinsve. A atriz está assustadoramente incrível no longa, abraçando sua personagem da forma que sua personagem abraça a vida e servindo de fio condutor para o mergulho do espectador na história que é, se pensarmos bem… prosaica, com dois ciclos bastante objetivos de relacionamento. Afinal, o ponto focal é justamente esse, estudar a vida como ela é em toda sua complexidade que, na prática, resulta em ações simples, mesmo que por vezes desafie a razão. Claro que o diretor tem mérito em seu trabalho com elenco, até porque Anders Danielsen Lie também está muito bem, ainda que seu arco não me pareça completo e eu tenha reticências com o trabalho de Herbert Nordrum, por achá-lo um tanto quanto “fora” da sensibilidade da narrativa, talvez, mas Reinsve encanta de imediato, sem sequer precisar de muito esforço.

A Pior Pessoa do Mundo é um testamento sóbrio e cuidadoso e ao mesmo tempo leve e despojado sobre o desafio à convenções que sabe trabalhar questões delicadas da natureza humana sem panfletagens e didatismos e sem apelar para humor barato. Sua linguagem visual, o impressionante trabalho da atriz principal e sua estruturação em capítulos de durações variadas tornam a obra imediatamente encantadora, mas, em medidas iguais, contestadora e reflexiva. É o tipo de filme que ele mesmo subverte o que se espera dele, mas sem jamais parecer que ele nos está dando uma rasteira audiovisual.

A Pior Pessoa do Mundo (Verdens Verste Menneske – Noruega/França/Suécia/Dinamarca, 2021)
Direção: Joachim Trier
Roteiro: Joachim Trier, Eskil Vogt
Elenco: Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Herbert Nordrum, Hans Olav Brenner, Helene Bjørneby, Vidar Sandem, Maria Grazia Di Meo, Lasse Gretland, Karen Røise Kielland, Marianne Krogh, Thea Stabell, Deniz Kaya, Eia Skjønsberg
Duração: 128 min.

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