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Crítica | A Possessão de Mary

por Leonardo Campos
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A Possessão de Mary é uma grande decepção. A sua intrigante abertura nos deixa sem saber se de fato teremos um “exorcista no mar”, pois o encontro entre duas situações, isto é, o sufocante ambiente claustrofóbico do oceano e a presença de uma possessão diante de uma entidade sobrenatural podem promover algo que ainda não tenhamos contemplado no cinema: um filme de exorcismo em pleno alto-mar, sem a ajuda de padres, crucifixos e outras intervenções. Logo na abertura, não sabemos se a possessão é da filha, a pequena Mary (Chloe Perrin) ou da embarcação, também chamada Mary, uma habitação assombrada itinerante. As respostas chegam logo e se apresentam como uma mistura disso tudo. E o resultado, como dito na abertura, é uma decepção de grandes proporções.

Primeiro porque ao saber que Gary Oldman e Emily Mortimer estavam no elenco, imaginei que iria assistir um filme diferente, bem cuidado, oriundo de atores que sabem escolher bem os seus papeis e não topam participar de qualquer coisa. Mas me enganei, até porque se olharmos atentamente, os envolvidos na seara do desempenho dramático fazem o que pode para dar dignidade ao filme. Jennifer Esposito entrega um personagem com poucas falas, enquadrada na maioria das vezes em contra-plano ou plano-médio, em diálogo com a personagem de Mortimer, narradora dos fatos na delegacia, mas ainda assim não é suficiente, pois é bem possível que a assombração que envolve A Possessão de Mary seja extra-diegética e envolva os produtores e a edição, pois se tivesse sido narrado de maneira menos exótica, bem como eliminado metade ou todos os efeitos visuais e inserções exageradas de jumpscare, teríamos um filme no mínimo irregular, talvez curioso, mas não tão ruim quanto se apresentou em sua versão de exibição.

Recentemente, depois de ter revisitado um conjunto considerável de filmes orientais de terror, juntamente com as suas refilmagens estadunidenses, a minha tolerância e compreensão para narrativas que abusam do nonsense, isto é, da falta de encaminhamento narrativo comum aos ocidentais, acostumados com filmes bem explicativos e delineados no que se trata o começo, o meio e o fim, tudo milimetricamente delineado, tornei-me ainda mais aberto às outras possibilidades de acompanhamento de uma história. O problema é que mesmo diante desta nova consciência, A Possessão de Mary ainda continua inaceitável, pois em sua pretensão de trazer linhas narrativas cruzadas, falta de exatidão na cronologia e outras estratégias de idas e vindas entre o que é contado e o que aconteceu, o filme se perde e faz com que nos percamos diante de sua confusão e tédio.

Com roteiro de Anthony Jaswinski, a trama utiliza o mesmo recurso de Águas Rasas, isto é, demonstrar algo do desfecho, para logo depois, retornar e demonstrar como tudo aconteceu. Também responsável pelo filme citado, a melhor produção sobre tubarões depois do filme de Spielberg, Jaswinski demonstra ser apaixonado por temas aquáticos, mas dessa vez, não consegue chegar nem perto do clima de tensão e do desenvolvimento dramático da trama sobre a surfista atacada por um enorme tubarão-branco. Engraçado observar que enquanto escrevia, lembrei que em ambos os filmes, temos pessoas acossadas por entidades, uma de origem natural, um tubarão, alegoria para a relação entre seres-humanos e natureza, e a outra, espiritual, alegoria para o fracassado casamento da dupla protagonista, bem como representação sobrenatural para os problemas financeiros que enfrentam.

Os dois filmes expõem personagens à deriva, em situações angustiantes, com poucas chances de sobrevivência. O problema é que em Águas Rasas, Jaswinski consegue estabelecer a atmosfera e mantê-la com dignidade do começo ao fim. Em A Possessão de Mary, os diálogos, as cenas de tensão e a ação naufragam vertiginosamente. Basta saber se o culpado é o texto, ou se neste filme, temos mais um caso de intervenções abusivas de produtores ou falta de competência do cineasta responsável por assumir a produção, Michael Goi, conhecido por suas incursões como realizador em episódios das séries O Monstro do Pântano e American Horror Story. Diante da experiência de Goi, é de se questionar se o cineasta estava em seus piores momentos profissionais ou se houve alguma sabotagem nos bastidores ou na pós-produção, processo que algumas vezes envolve sucateamento de um material que teria outra roupagem.

Diante do exposto, saiamos das suposições para a realidade. Ruim, A Possessão de Mary nos apresenta David (Oldman), homem que vive de suas atividades marítimas, casado com Sarah (Mortimer), esposa dedicada que em determinado momento, falhou e cometeu adultério. O filme apresenta o casal já reestabelecido, com a jovem mulher estressada diante dos problemas financeiros e o marido em busca de um novo rumo para a vida, o que envolve a compra da embarcação que será reformada e chamada de Mary. Há rumores sobre o histórico do barco, supostamente encontrado à deriva em alto-mar, sem nenhum de seus tripulantes. As filhas do casal, Lindsey (Stefanie Scott) e Mary (Perrin), alimentam as histórias, mas ninguém leva nada à sério, até que acontecimentos incomuns começa, a perturbar a viagem para as Bahamas.

A pequena Mary começa a se comportar de maneira estranha, ora violenta, ora assustadora em suas conversas com uma amiga imaginária. Constantes pesadelos, repletos de jumpscare, tornam o sono do casal David e Sarah um transtorno, além de Mike (Manuel Garcia-Rulfo), pescador que trabalha com o patriarca há anos, começar a apresentar um comportamento estranho. Entendemos, desde então, que a possessão no barco funciona como uma espécie de filme de casa assombrada, pois a entidade em questão não poupa ninguém além do casal, as vítimas que precisam purgar diante do sobrenatural a comprovar que o casamento deles é um fiasco e não vai para lugar nenhum. Essa viagem, por sinal, será determinante.

Quem também acompanha os viajantes é o jovem Tommy (Owen Teague), interesse amoroso de Lindsey, a filha mais velha da família. Ele é o primeiro a ser levado pela possessão e precisa ser deixado numa cidade próxima, para que assim, o grupo continue a viagem, mesmo com desconfiança de que algo não está nada bem. Adiante, depois de muitos sustos, situações aleatórias, flashbacks de Sarah a contar para a detetive Clarckson (Esposito) os acontecimentos, tendo em vista comprovar que não cometeu nenhum crime premeditado, sabemos vagamente que uma bruxa foi afogada no passado e que desde então passou a assombrar embarcações daquela região, etc. Com um canto estranho antes de aparecer, ela parece uma sereia, mas com traços de demônio e bruxa, versão menor da antagonista de Invocação do Mal.

A esperança de espectador em busca de um bom filme de terror naufraga logo nos primeiros quinze minutos, quando durante uma foto com a família diante da embarcação, o jovem Tommy, responsável por registrar a imagem, é assustado, tal como nós, por uma assombração oriunda de efeitos visuais bem razoáveis, criada pela equipe de Dennis Thorlaksen, aparição acompanhada de um estridente efeito sonoro. Dali em diante, estava claro que o filme iria se render ao jumpscare de maneira brutal, exagerada e tola. A direção de fotografia de Michael Goi tenta cumprir a sua missão de nos fazer sentir dentro da embarcação, não num estúdio, algo que é notável e eficiente. The New Brothers assina a trilha sonora, condução musical que se perde diante dos efeitos sonoros em excessos, produzidos pela equipe de George Haddad. Por fim, no que tange aos elementos estéticos, a direção de arte de Elizabeth Boller traz elementos convincentes para o interior do barco, num bom trabalho em paralelo aos demais segmentos que formam o design de produção comum de Kara Lindstrom.

Ademais, diante de seu potencial, A Possessão de Mary falha, em especial, por perder o rumo diante dos conflitos que propõe trabalhar. Não era preciso ir tão profundamente na mitologia da bruxa que assombra a embarcação, mas breves passagens de ciúme do marido em relação ao passado da esposa são rasas demais. A sexualidade da filha, aflorada por conta da adolescência, não é trabalhada e se apresenta como abordagem sem razões, pois as tantas investidas em piadas com a moça no ápice de sua tensão sexual com o namorado Tommy somem justamente como os personagens da embarcação. Temos para refletir a velha lição patriarcal que envolve uma traição feminina como a responsável pela devastação do âmbito familiar, pois de todos os problemas que envolve a família, este é o tópico abordado constantemente.

Tal como a bruxa que amaldiçoa o mar que serve de travessia para os personagens, Sarah é a mulher maldita que precisa purgar por conta de seus erros do passado, algo que a acompanha até o momento presente, em especial, no desfecho da narrativa, tentativa banal de estabelecer um plot twist, logo num momento em que nós, espectadores, não aguentamos mais e oramos mais pelo fim do filme do que pela salvação da família perdida. Produzido em 2019, mas lançado por aqui apenas este ano, A Possessão de Mary fracassa em seus 85 minutos de duração, num amontoado de clichês tediosos que não conseguem nem transformar o filme num entretenimento ligeiro. Fica a discussão sobre a mulher, o esfacelamento da família, mas há filmes muito melhores para colocarmos tais temas em discussão. Há outros filmes sobre possessão já comunicados pela mídia publicitária para os próximos anos, numa comprovação do interesse do público e da indústria pela temática. Basta saber se os resultados serão tão desastrosos.

A Possessão de Mary (Mary, EUA – 2019)
Direção: Michael Goi
Roteiro: Anthony Jaswinski
Elenco: Chloe Perrin, Douglas Urbanski, Emily Mortimer, Gary Oldman, Jennifer Esposito, Manuel Garcia-Rulfo, Owen Teague, Stefanie Scott
Duração: 85 min.

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