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Crítica | A Quarta Aliança da Sra. Margarida

por Luiz Santiago
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Em uma trilha esteticamente mais apurada que a de O Presidente, seu primeiro filme, Carl Theodor Dreyer realizou na Suécia, e não na Dinamarca, a sua segunda produção, tendo aí influência dos maneirismos de estúdio que eram caros às produções dos então grandes cineastas daquele país, especialmente Victor Sjöström e Mauritz Stiller. Neste drama de época, adaptado por Dreyer da obra de Kristofer Janson, conhecemos a história de Sofren (Einar Röd), jovem de origem humilde que deseja assumir o cargo de pastor e então poder casar-se com sua noiva Mari (Greta Almroth).

Já nas primeiras cenas, o diretor escolheu nos mostrar simbolicamente parte do destino que aguardava o jovem protagonista: ele está próximo a uma cachoeira, com sua noiva Mari, falando da futura apresentação teológica que precisaria fazer na igreja local, disputando o cargo de pastor com outros dois jovens bem estudados, vindos da capital. Para um enredo ambientado no século XVII, temos uma grandiosa fidelidade no que concerne aos cenários (a direção de arte criou um perfeito ambiente para as internas, especialmente mostrando a igreja e o interior das casas nórdicas daquele século) e nos figurinos, elemento que o diretor sempre procurou representar com precisão.

A escolha da cachoeira como motivo natural logo da abertura do filme tem um bom leque de significados. A maleabilidade a água versus a imobilidade das rochas; a trajetória descendente da água versus a trajetória ascendente da montanha; a dualidade de matéria, estados e caraterísticas dessa formação natural já dava as cartas para o que seria a relação entre Sofren e a Sra. Margarida (Hildur Carlberg), viúva do pastor falecido que, segundo os hábitos locais, poderia se casar com o seu sucessor. Há aqui uma mistura de tragédia matrimonial e pessoal envolvidas em uma série de outros impasses que vamos conhecer no desenvolvimento do filme. Dreyer se permite uma notável camada de comédia em muitas partes da obra, com destaque para as pegadinhas que Sofren começou a pregar em sua velha e indesejada esposa, a fim de que seu frágil coração falhasse e ela… morresse, permitindo-o casar com seu verdadeiro amor, a jovem Mari.

Embrulhado na comédia, porém, o diretor insere uma entrelinha que marca uma sofrível repressão e frustração sexual dos jovens, que jamais conseguem se aproximar porque a Sra. Margarida — aparentemente mais forte a cada dia — vive como uma ave de rapina, a tudo observando. O ardil de Sofren ao trazer Mari para a casa pastoral, mentindo que ela era sua irmã, não sai como o planejado e o personagem é colocado em situações que nos fazem questionar a sua verve cristã, posto que o comportamento em relação à esposa não é dos mais exemplares. Mas não devemos nos enganar em relação aos momentos cômicos. O realismo na representação (histórica e visual) das tradições rurais e religiosas do norte da Europa, passadas através das gerações, paira como um conhecido mas aparentemente inquebrável impedimento para a felicidade. O diretor não necessariamente critica isso — afinal, ele partilhava dessas ideias, desses valores — mas tem os pés no chão e sabe perceber quando uma tradição interfere negativamente na vida das pessoas, o que se torna um problema ainda maior quando existe um elemento de fé envolvido.

Na segunda metade da obra encontramos alguns saltos temporais que interferem numa melhor exposição do cotidiano do jovem pastor, dando a impressão de pequenos curtas editados não tão organicamente; mas a esse despeito, o personagem em si é mantido em clara evolução, cada dia mais triste, frustrado e então passando para um estágio inesperado. A mesma coisa vai acontecendo com a Sra. Margarida, que passa de uma possível bruxa a uma senhorinha amável a quem o espectador igualmente aprende a amar. Os experimentos da direção de fotografia, quando Sofren oficializou o pedido de casamento, terminam de dar os seus frutos da maneira mais bela possível. Primeiro, um tom macabro toma conta da relação entre homem e mulher; a casa parece assombrada e tudo ao redor parece corroborar a ideia de que a Sra. Margarida vai viver mais 100 anos e lançou um feitiço no pobre Sofren.

A mudança de visão, do horror para o cômico (onde reina sempre a melancolia) e daí para o amoroso (onde reinam o romantismo e a afeição) é feita de maneira aplaudível pelo diretor, deixando-nos em um estágio final onde a vitória e a liberdade estão acompanhadas da tristeza da perda de um amor recente, independente de qual tipo de amor estamos falando. A Quarta Aliança da Sra. Margarida é uma história de amor improvável ou de construção de laços onde dois corpos muito diferentes jamais poderiam se harmonizar. Ou assim se pensava. Como a cachoeira do início do filme, Sofren e Margarida formam um todo harmonioso, até que a própria natureza percebe que o renovo dos componentes da paisagem deve acontecer. Trata-se um filme estranhamente realista (e digo “estranhamente” devido aos componentes não-realistas que ele traz) sobre opostos, amadurecimento, necessidades frustradas e aprendizado. Um legítimo Dreyer.

A Quarta Aliança da Sra. Margarida (Prästänkan) — Suécia, 1920
Direção: Carl Theodor Dreyer
Roteiro: Carl Theodor Dreyer, Kristofer Janson
Elenco: Hildur Carlberg, Einar Röd, Greta Almroth, Olav Aukrust, Emil Helsengreen, Mathilde Nielsen, Lorentz Thyholt, Kurt Welin
Duração: 71 min.

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