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Crítica | A Queda do Império Americano

Quando um homem encontra uma mala de dinheiro…

por Fernando JG
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Me perguntava o que Denys Arcand teria a oferecer de diferente a um enredo simples como este: em que um rapaz testemunha um roubo milionário ao Banco Canadense e então se envolve, por acaso, no meio de um crime de alto escalão. Passa-se, então, os primeiros vinte ou trinta minutos e encontro, sem muito esforço, alguns erros de enredo que fariam da película uma coisa materialmente frágil e da trama algo indesejável. Ocorre-me então de passar pela primeira hora e me encontrar obcecado pelo labirinto que se abria na minha frente. Algo que há minutos eu acabara de tomar como previsível mostra-se como uma surpresa pelo enredo não apenas oferecer inúmeras peripécias, mas excelentes delas. Da água para o vinho é o movimento que a película faz em qualidade ao longo das suas duas horas.

Dirigido e escrito por Denys Arcand, A Queda do Império Americano concentra-se em Pierre-Paul Daoust (Alexandre Landry), um PHD em Filosofia que, para viver, trabalha como entregador para uma empresa canadense. Numa dessas entregas, acaba testemunhando uma tentativa de assalto que dá errado, restando duas malas cheias de dinheiro no chão em um lugar vazio. Numa questão de segundos, ele raciocina e decide pegá-las antes que alguém veja e assim que termina de jogá-las dentro do caminhão a polícia chega ao local do crime. Mesmo que a princípio não tenha nada a ver com o ocorrido, Daoust torna-se a primeira suspeita do roubo milionário. Por um lado, ele estava na hora certa e no lugar certo, mas, por outro, igualmente no lugar errado e na hora errada. 

Como havia dito, o filme parece não dar certo durante seus primeiros grandes minutos e não mostra a que veio. Há erros: como os de enredo. Toda a história está ligada ao furto do dinheiro, que ninguém sabe quem pegou. Cabe a pergunta: como não há câmeras de segurança em um banco ou ao redor dele? Numa cena adiante, em algo que me parece ser uma falha de continuidade, o personagem de Rémy Girard, o famoso “The Brain”, diz a Daoust, a propósito de quando eles estão tentando esconder o montante milionário, que há câmeras em todos os lugares, por isso que ele está se vestindo de preto e com óculos escuros, para que não possam vê-lo. Evidencia-se prontamente uma incongruência grotesca de enredo. Embora eu defenda a tese de que sejam erros propositais, não deixam de ser erros.

É melhor que se erre de maneira proposital a errar por não saber, uma vez que aquele mostra perspicácia, e este último, desconhecimento. Quando Arcand omite a questão das câmeras de segurança, algo fundamental para a trama, ele está facilitando o seu enredo para que o mesmo se desenrole sem muitas dificuldades. É uma solução para um possível enlace futuro. Com essa omissão, ele consegue criar a história que quiser em cima, uma vez que terá a licença de que “ninguém viu o seu personagem pegar o dinheiro”, algo que seria totalmente diferente com as câmeras de segurança. É uma solução de quem sabe o que está fazendo, claro, mas é uma solução amadora e que não é vista com bons olhos.

No mais, o filme surpreende por sua guinada sempre adiante, isto é, pelo ótimo ritmo impresso. Ele apenas cresce a cada minuto, oferecendo nós e desenlaces excelentes, complexificando a si mesmo. Por isso que digo anteriormente que o seu “erro” foi proposital para favorecer a sua própria trama. O cineasta articula um thriller inserido numa ação policial em que o subgênero whodunnit é o principal elemento que guia os passos de seus anti-heróis – isso sem deixar de lado um belíssimo romance que oferece vida à película. Gosto sobretudo da consistência que tem o desenvolvimento da relação amorosa, porque é sempre um “morde e assopra” que vai inflamando a nossa vontade de saber onde vai dar. Parece-me que em todas as camadas do filme o cineasta tende a deixar um baita de um suspense bem pensado.

Alguns acontecimentos incrementam a roda, como o “roubo do roubo do roubo”, quando o dinheiro cai de mãos em mãos e não se sabe onde está; a descoberta de que a prostituta por quem Doust se apaixona ter sido anteriormente casada com o delegado de polícia que o investiga; a polícia que não tem interesse em solucionar o crime, mas ficar com o dinheiro, entre outros inúmeros pontos que alavancam a trama e não a deixam cair na monotonia. Se há algo de verdadeiro, é que está longe de ser tediosa, porque todo o núcleo de ação é frenético e os personagens extremamente bem alocados no conflito. É incrível que, como um bom whodunnit, Arcand saiba posicionar a importância de cada um de seus protagonistas, sem deixar por desenvolver nenhum dos que se propõe a trabalhar. Aqui não se trata de profundidade psicológica e é bom nem procurar por isso, o que interessa a nós e ao cineasta é a sociologia da trama, o limite das ações, a sucessão de fatos, o clímax, os reveses e as soluções – e nisso o cineasta sabe trabalhar. 

Assim como em suas obras anteriores, Jesus de Montreal e As Invasões Bárbaras, encontramos uma película em situação de ser uma crítica social, que despeja uma visada contemporânea para problemas modernos. Fica claro que a corrupção policial é institucional – algo que pertence às camadas mais profundas da corporação -, bem como nota-se uma cutucada no sistema capitalista como um todo, em que sempre há brechas para que a corrupção aconteça por meios “legais”, através de grandes autoridades que deveriam prezar pela ética e moral. Para Arcand, esses valores não existem na sociedade atual, ou melhor, existem sempre em detrimento de interesses, sendo mesmo valores variáveis conforme a melhor oferta. Até por isso que opera, na trama, uma inversão de sentido que estabelece o seu principal efeito: torcemos desde o início para que o roubo dê certo e para que nunca seja descoberto o furto. Os mocinhos viram vilões, e os vilões, mocinhos – e isso tem a ver com a perspectiva crítica que estabelece o cineasta na construção de sentido de sua película. Essa é a sua visão e somos influenciados por ela. De algum modo, Arcand faz justiça com as próprias mãos através do filme, e dá o dinheiro para “quem merece” na hierarquia social. Tira dos ricos para dar aos pobres, no dialeto popular.

Diria que A Queda do Império Americano tem muito sucesso na transmissão da sua mensagem principal a respeito das contradições do sistema capitalista e cumpre o seu papel como deveria ser, além de repor temas e motivos próprios da assinatura de Arcand, remarcando mais uma vez a sua característica enquanto cineasta crítico ao mundo e ao sistema que o compõe. Com uma trama que surpreende e um roteiro de base excelente, observamos que a película cresce exponencialmente, a olho nu, e é uma ótima surpresa o que oferece como arranjo “climático” bem como solução para o seu nó narrativo, nos satisfazendo por completo. Eu, pelo menos, saio satisfeito da história contada e da resolução encontrada pelo diretor. O filme abre-se ao público e apenas tem a ganhar com isso, além de não subestimá-lo enquanto receptor da obra. 

A Queda do Império Americano (La chute de l’empire américain, Canadá, 2018)
Direção: Denys Arcand
Roteiro: Denys Arcand
Elenco: Alexandre Landry, Maripier Morin, Pierre Curzi, Rémy Girard, Maxim Roy, Louis Morissette, Florence Longpré, Vincent Leclerc, Yan England, Rémy Deloume, Patrick Emmanuel Abellard, James Hyndman, Eddy King, Paul Doucet, Denis Bouchard, David Savard
Duração: 127 min. 

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