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Crítica | A Religiosa (2013)

por Pedro Roma
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Tendo a árdua responsabilidade de não somente adaptar a mais importante novela de Diderot, mas também de tecer nova versão ao consagrado filme de Jacques Rivette, A Religiosa de 1966, o francês Guillaume Nicloux optou por um caminho perigoso, dirigindo uma obra deveras comum, talvez comum demais para o gosto do espectador: usa da beleza estética de seus cenários para reiterar o horror do mundo interior de suas personagens. Uma abordagem perigosa e que rapidamente encontra seus problemas. Verdade seja dita, sua tarefa era árdua, não somente a tarefa de adaptar as 450 páginas do romance título como ter de, inevitavelmente, enfrentar comparação com seu conterrâneo cineasta, algo não só muito presente, como necessário também. Filme um tanto inesperado, tanto hoje como em sua época de lançamento, ele acaba por vacilar em pontos muito importantes, mas ainda assim mantém a urgência de sua temática, que por si só carrega certa notoriedade.

Porém, antes de adentrar na construção cinematográfica da película, será de bom grado conhecer a obra base e seu criador. O filosofo Denis Diderot nasceu na França do século XII, fervilhante de novas ideias filosóficas e políticas. No contexto da consolidação do pensamento científico, o autor encontra na matéria, ou seja, nos fenômenos físicos sua perspectiva teórica. Sua disposição não é metafísica, a moral não se encontrara, agora, acima dos homens, mas neles mesmos. É num de seus mais célebres livros, A Religiosa, que se encontra um dos primeiros autores a se dispor e debruçar sobre o estudo da questão da sexualidade feminina, no caso exposta sem pudor nas páginas de seu romance filosófico. Sadismo e ambiguidade sexual caminham lado a lado com repressão e obsolescência do desejo; da amasia lésbica até o suicídio, o escritor corajosamente critica o status monarquista e clerical de seu tempo e mesmo não sendo tão bem visto hoje, afinal, ele próprio utiliza-se de estruturas machistas quando observa o feminino para além da revolução francesa, ele participou de uma revolução intelectual e crítica sem precedentes, a revolução educacional.

Trazendo para a película a triste peregrinação de Suzanne (Pauline Etienne), posta na vida monástica pelos seus pais contra a sua vontade, o filme tenta através de conflitos melodramáticos atingir e sensibilizar seu expectador. Diferente de casos onde isso acaba saindo bem sucedido como em Ondas do Destino ou A Paixão de Joana D’Arc, o tempo de tela e o foco dado jamais espera o espectador se envolver com a trama. A edição e a montagem não facilitam essa relação, há segmentos bizarramente mal montados que além de desnortear também nos retira do tempo do filme, planos mal planejados que quebram o eixo da ação com facilidade. O diretor decidiu usar do contraste entre a secura de seus cortes e o esplendor de sua arte, o que funciona na maior parte da trama, mas que acaba deixando-a um tanto arrastada e chata. Vendo por esse lado, saídas inteligentes como o lapso temporal de dois anos no início ou o uso das subjetivas para acabar com a monotonia narrativa foram muito bem vindas.

Nesse ponto deve-se criticar o roteiro, que mesmo adaptando muito bem a história não o fez com a dimensão temporal interessante. A trama é apressada, todos os assuntos acabam ficando um tanto perdidos pelo tempo dado a eles, e quando bem colocados aparecem deslocados em relação às mudanças internas da personagem. Essas mudanças aparecem como crítica ao sistema religioso e a castidade do clausuro, mas na verdade representa um papel de grande submissão dela a alguém. Talvez por isso como pela personagem principal que não cativa, sua história não consiga ir para frente.

Mesmo errando em pontos vitais de sua história, a maneira como é colocado a maior parte dos elementos narrativos se sustenta e muito bem, muito por seus audaciosos pontos de virada como por um número de cortes muito bem filmados, quando o que está sendo contado consegue ganhar o espectador, fazendo-o se interessar de fato, mais pelo drama e menos pelo choro. De fato, vemos isso nas relações sociais das personagens que mesmo rápidas demais são suficientes para se aperceber-se de seu sofrimento. Ou seja, errando bastante o diretor consegue valer seu filme por acertar onde era mais pertinente, na sua mensagem.

A intenção por trás do filme, assim como do livro, é fazer uma apologia à liberdade sexual, o que pode parecer datado para alguns, mas um tanto necessário no atual clima de violência e intolerância que vivenciamos. Nas palavras de Diderot: “Queres saber, diz Oru, um nativo de Taiti, em Suplemento à Viagem de Bougainville, ‘o que é bom ou mau? Apega-te à natureza das coisas e das ações; a tuas relações com teu semelhante; à influência de tua conduta sobre tua utilidade particular e o bem geral”. Muito me questiono o que faz um filme relevante ou não. Acredito que é como seus valores sejam relevantes, a porção central do seu todo cinematográfico. É na capacidade e no poder de sua mensagem que um filme se faz grande ou não.

Portanto, essa última versão de a religiosa não consegue o charme de seu antecessor, ou a coragem das sandices conseguidas por Joe D’Amato com seu Monjas Pecadoras, também inspirado no mesmo livro. Mas além de possuir uma cinematografia muito bonita, mesmo que falha, Guillaume Nicloux se vale de seu tema para constituir uma obra interessante e nada esquecível sobre questões antigas e mesmo assim nunca tão contemporâneas.

Tão logo a mulher se tornou propriedade do homem, o desfruto furtivo de uma rapariga foi considerado roubo, viu-se nascer os termos pudor, moderação, decência; virtudes e vícios imaginários; em uma palavra, quiseram erigir entre os dois sexos barreiras que os impedissem de se convidar reciprocamente à violação das leis que lhes foram impostas, e que produziram amiúde efeito contrário, aquecendo a imaginação e irritando os desejos.

DIDEROT, D., Suplemento à viagem de Boungainville. In: Ribeiro, V. C., 2003 .

A Religiosa (La Religieuse) — França, Alemanha, Bélgica, 2013
Direção: Guillaume Nicloux
Roteiro: Guillaume Nicloux, Jérôme Beaujour (baseado na obra de Denis Diderot)
Elenco: Leonor Baldaque, Beatriz Batarda, Carloto Cotta, Diogo Dória, Adrien Michaux, Ana Moreira, Mozos Francisco, Isabele Huppert, Pauline Etienne.
Duração: 114 min.

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