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Crítica | A Saga do Judô (1943)

por Luiz Santiago
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Akira Kurosawa iniciou a sua carreira no cinema bem antes de dirigir o primeiro longa-metragem. Entre 1936 e 1941, o então assistente de direção esteve na equipe de produção de 24 filmes, trabalhando principalmente ao lado do diretor Kajiro Yamamoto, a quem sempre considerou como um mentor. Nesse período, Kurosawa também esteve na equipe de Mikio Naruse, sendo o terceiro assistente de direção no filme Nadare (1937). Ele até chegou a dirigir algumas cenas do longa Uma (1941), de Yamamoto, mas não recebeu os créditos pela direção.

Essa experiência pregressa permitiu que Kurosawa tivesse uma clara percepção do que era o domínio da câmera, da linguagem cinematográfica e da direção de atores, lições que lhe serviriam muito no início da carreira. Atento observador, conseguiu dominar bem cedo o equipamento de filmagem e, em seguida, o de edição. Em 1942, escreveu dois roteiros para a Toho, mas não conseguiu a confiança dos produtores para dirigi-los. A sorte mudaria em 1943, quando adaptou o famoso romance de Tsuneo Tomita e, após alguma insistência, conseguiu o aval para assinar o filme.

Lançado em plena Segunda Guerra MundialA Saga do Judô teve imensos problemas com a censura e contou até com os esforços do veterano Yasujiro Ozu para que fosse lançado. A versão aprovada para exibição, no entanto, era menor que a imaginada por Kurosawa, e todo o material cortado do filme acabou se perdendo. Todavia, é possível identificar alguns pontos da obra que deixam claros os motivos pelos quais a censura se incomodou e, a despeito dos cortes recebidos, A Saga do Judô contém elementos que não mentem quanto a assinatura de Kurosawa.

O elemento mais forte e mais visível do filme é a quebra da tradição. A história aborda o surgimento do Judô e a oposição imediata com o tradicional Jiu-jitsu. Ambientado em 1882, ano em que Jigoro Kano fundou a arte do “caminho da suavidade”, a película nos mostra a dificuldade de a nova arte marcial se estabelecer e o preconceito inicial em relação aos seus discípulos. Dentro dessa armadilha social, Kurosawa escreve e dirige muito bem as motivações pessoais e espirituais para mentores e alunos, diferenças que podemos ver claramente durante as lutas e que não podem ser generalizadas, porque tanto de um lado quanto de outro existem lutadores desequilibrados.

A primeira parte da obra é praticamente o caminho da iluminação e crescimento do protagonista do filme, Sugata Sanshiro (título original do filme). Se fosse filmado cinco anos depois, o papel certamente seria de Toshiro Mifune, especialmente porque mostra a passagem de um lutador “selvagem” para alguém que encontrou sua paz de espírito e passou a ver a humanidade com outros olhos. Embora Sugata não tenha tido grandes explosões emocionais antes de seu longo treino, percebemos uma pessoa bem diferente após a “noite de iluminação”. Também notamos que o personagem é fisicamente superior aos seus adversários mas que não há nele nenhuma ponta de orgulho ou ar de superioridade, atitude que se escancara por ocasião da luta contra o mestre Hansuke Murai.

Já nesse filme de estreia, Kurosawa expõe no roteiro e na imagem uma gama de conflitos morais, éticos e (esteticamente) culturais, de onde podemos eleger os reflexos do western e a presença da cultura japonesa, seja no modelo quase teatral das filmagens internas, no belíssimo uso da matéria natural e, claro, na música, embora o cineasta ainda não traga os acertados pontos de ligação entre as tramas internas e a conclusão individual dos destinos que se afunilam. Mas já podemos perceber um notável uso de câmera e uma forma bastante lírica de inserir o romance ou qualquer outro sentimento e relações afetuosas sem interferir negativamente na história central.

A presença da natureza aqui possui significados além do óbvio e ganha belas metáforas ou elipses narrativas durante a projeção, como na cena com o geta (aquele calçado tradicional de madeira) de Sugata, que é deixado na rua quando ele assume o riquixá do mestre de Judô e passa a segui-lo. Além de representar a primeira renúncia do personagem, o objeto marca de maneira poética a passagem do tempo. Vemos o transcorrer das estações do ano, o cachorrinho que rói o geta e um constante movimento do objeto pela paisagem, um espelho do que estaria acontecendo com o seu antigo dono. Não é à toa que quando o calçado é enfim jogado no rio e levado pela correnteza, temos em sentido contrário, um grupo de lutadores correndo atrás de Sugata. É um ponto de ruptura, um caminho diferente a ser seguido a partir daquele momento.

A Saga do Judô superou as minhas expectativas. Eu já sabia que ele havia sido picotado pela censura, então esperava um produto bastante inferior, já que esse tipo de interferência geralmente desconfigura toda a obra. Mas fiquei espantado do quanto foi mantido e de como já é possível, neste filme, perceber elementos muito caros a Kurosawa, coisas que ele manipularia com perfeição alguns anos depois. Embora não figure na lista de seus melhores filmes, A Saga do Judô é um início interessante, o primeiro passo de uma gloriosa carreira.

  • Crítica originalmente publicada em 25 de novembro de 2012 

A Saga do Judô (Sugata Sanshirô) – Japão, 1943
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa (baseado na obra de Tsuneo Tomita)
Elenco: Denjirô Ôkôchi, Susumu Fujita, Yukiko Todoroki, Ryûnosuke Tsukigata, Takashi Shimura, Ranko Hanai, Sugisaku Aoyama, Ichirô Sugai, Yoshio Kosugi, Kokuten Kôdô, Michisaburo Segawa
Duração: 79 min.

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