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Crítica | A Sala de Música

por Luiz Santiago
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Em 1951, o governo da Índia aboliu um dos títulos políticos mais antigos do país, que vinha desde antes da partição do subcontinente, então nas mãos dos britânicos e sob o nome de Hindustão. Naquela sociedade, os zamindars eram importantes proprietários de terra que exerciam um governo autônomo (ou semiautônomo, dependendo do caso) de um Estado que aceitava prestar contas ao imperador hindu. Em certos momentos da História da Índia, esses latifundiários-governantes estiveram ligados ao Exército, aumentando o seu poder local e sua influência ante o imperador. Os zamindars também receberam titulações de caráter principesco ou reais (durante o Império Mongol e também durante o domínio britânico), como marajá, rajá e nababo (ou nawab). Em A Sala de Música, filme de 1958, o diretor Satyajit Ray nos conta a história de um desses indivíduos. Um decadente zamindar.

O roteiro é baseado no popular conto Jalsaghar (1938), do escritor e músico Tarasankar Bandyopadhyay. Em sua adaptação, Satyajit Ray utiliza o personagem Biswambhar Roy (Chhabi Biswas, que já trabalhara com o diretor em A Pedra Filosofal) para nos mostrar a decadência econômica de um zamindar e o seu apagamento como pessoa, no sentido físico, emocional e psicológico. E notem que eu disse “decadência econômica” ali atrás. Isso porque mesmo progressivamente empobrecendo, Biswambhar se recusa a ceder em seus hábitos e mantém com todo o orgulho possível o fiapo de importância que um dia ele teve.

Muitas leituras podem ser feitas a partir daí, a começar pela maneira como o cineasta relaciona a decadência do indivíduo com a decadência de seu palácio. No primeiro recuo temporal do filme, o roteiro deixa claro que as dificuldades financeiras desse zamindar é bastante antiga, mas ainda assim ele consegue segurar a sua falsa pompa em uma decadente residência grandiosa, insistência que o espectador pode interpretar como sendo um apego aos momentos felizes que ele teve ao lado da esposa e do filho ou apenas a vontade íntima de manter o seu status, o respeito que os outros tinham por ele e, principalmente, a existência de sua sala de música, verdadeira fonte de prazer para o personagem.

Em alguma medida, Biswambhar se parece com o religioso que encontrara uma pedra filosofal no filme anterior do diretor. A diferença entre esses homens é que Biswambhar busca avidamente por uma fuga de sua realidade cada vez mais complicada, trágica, alquebrada. Enquanto o religioso enriquecia com os pés no chão, sabendo dos riscos de transformar metais em ouro, mas fugindo da pobreza através dessa via milagrosa, o zamindar do presente filme empobrece com os pés nas nuvens, chegando inclusive a gastar tudo o que tem para financiar um “último concerto” em sua sala de música, na última longa sequência do filme com direito a dançarina e tudo.

Biswambhar sabe do agravamento de sua situação, e a partir de uma determinada tragédia em sua vida, tira de cena toda a possibilidade de reerguer-se. Aqui entra um outro elemento bastante explorado pelo diretor, que é a relação imagética entre o envelhecimento do personagem e a transformação de sua grande casa em uma espécie de “bela ruína“. A passagem do tempo em A Sala de Música é talvez o fator essencial para que a gente entenda como todos os blocos se entrelaçam. E mesmo tudo parecendo rumar para um inevitável fim, nem a casa e nem o seu dono perdem alguns dos ingredientes que lhes dão poder. A memória do passado glorioso também serve de fuga para Biswambhar numa belíssima cena após o último concerto, mas aí algo acontece: seu espaço de fuga dá sinais de que tudo realmente está em seus últimos suspiros. As luzes se apagam. Uma aranha anda sobre o quadro do poderoso zamindar e o lustre, símbolo de observação superior e iluminada de tudo o que acontece abaixo, finalmente se apaga.

Ray procura dar a Biswambhar um último momento de liberdade, criando uma sequência final que soa bastante anticlimática por conta do enorme e claro poder simbólico das luzes se apagando, na cena anterior. Ainda assim não deixa de ser uma cena bem filmada e conceitualmente interessante, apesar de destoar do todo. Num rompante, o protagonista não quer mais fugir de sua realidade. Sua última fuga não lhe trouxe um consolo duradouro, ao contrário, salientou algo que ele não queria reconhecer. Montar no cavalo e sair em desespero é a explosão pessoal onde o personagem procura sentir-se livre da prisão de sua casa, de seus hábitos cativos. Bem vestido, sobre um cavalo branco, ele avança pelo terreno… Ocorre que a sua própria casa já havia lhe sinalizado o que iria acontecer. Suas luzes estavam para se apagar — nota aqui para a direção de fotografia, que faz um trabalho de iluminação primoroso ao longo da obra, pintando os ambientes de modo sombrio e reforçando os contrastes na reta final, salientando o desespero do protagonista que, no momento de libertar-se, é assombrado pelo passado através da figura de um barco, a matriz de sua maior aflição.

Em A Sala de Música, Satyajit Ray coloca frente a frente os donos do poder em diferentes períodos históricos da Índia. De um lado, um descendente de uma respeitável linhagem de zamindars. De outro, o filho de um agiota que ascende socialmente, representando as novidades do Ocidente, as máquinas, os valores estranhos àquele território cheio de tradições e símbolos ameaçados. Mas essa é a visão externa da obra, a casca do enredo. No sumo, o filme é um belo e triste estudo sobre como um indivíduo se entrega por completo aos dissabores, aceitando a derrocada de sua vida pessoal e social, mas ainda assim, procurando manter viva a sua fonte de prazer cultural, que ao mesmo tempo é o símbolo de uma Era que não volta mais e o maior veículo de fuga de sua realidade. Uma tentativa viciosa e preocupante de se esquecer dos problemas enquanto não se faz nada para que eles deixem de crescer ou existir.

A Sala de Música (Jalsaghar) — Índia, 1958
Direção: Satyajit Ray
Roteiro: Satyajit Ray, Santi P. Choudhury (baseado na obra de Tarashankar Banerjee / Tarasankar Bandyopadhyay)
Elenco: Chhabi Biswas, Sardar Akhtar, Gangapada Basu, Bismillah Khan, Salamat Ali Khan, Waheed Khan, Roshan Kumari, Tulsi Lahiri, Tarapada Nandy, Padmadevi, Kali Sarkar, Pinaki Sengupta
Duração: 100 min.

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