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Crítica | A Segunda Vida de Missy, de Beth Morrey

por Luiz Santiago
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Livros com velhinhos simplesmente me derrubam. De safra recente, lembro-me até hoje o farrapo que eu fiquei após a leitura de O Dia em que Selma Sonhou com um Ocapi (2017) e a mesma sensação de “quentinho no peito”, de nostalgia e, no meu caso, de olhar para o futuro novamente apresentou-se para mim aqui em A Segunda Vida de Missy, livro de estreia da escritora Beth Morrey. Diferente da citada obra alemã, o presente livro não tem toques de fantasia. A abordagem de Beth Morrey é cosmopolita, centrada em personagens acadêmicos ou ligados às ciências humanas; relações entre espectros diferentes da classe média e alta do Reino Unido e relações familiares cruas, vistas a partir do olhar solitário da protagonista, a senhora Millicent “Missy” Carmichael.

No início do livro Missy está com 78 anos e a autora nos transmite com muita veracidade o olhar que essa mulher tem para a vida. Nos últimos anos ela se afastou dos amigos e do mundo exterior. Sai pouco de casa e tem uma aparência séria demais na rua, sempre com cara de poucos amigos. No entanto, o leitor não é jogado contra essa mulher. A narração em primeira pessoa nos puxa com leveza para o dia a dia silencioso e desacompanhado de Missy, que frequentemente se vê rememorando eventos e lamentando a perda de pessoas que fizeram parte de sua vida direta ou indiretamente (as mortes de David Bowie e Alan Rickman, por exemplo, são citadas).

Juntamente à narrativa no tempo presente temos flashbacks, e aqui confesso que a primeira vez que um desses apareceu eu torci o nariz. Por ter vindo “muito cedo” e por trazer informações que num primeiro momento nos faz questionar como caberiam no escopo geral da obra, eu fiquei temeroso que o livro fosse seguir paralelamente duas jornadas, ligando os pontos apenas no final. Mas eu não só paguei a língua como pude ver com os olhos brilhando como a autora inseriu essas visões do passado para dar maior sentido (e sentimento) àquilo que está acontecendo no presente. A fluidez aqui é admirável e está pontuada de momentos memoráveis, muito tristes ou que nos deixam de boca aberta. Temos, por exemplo, uma discussão entre mãe e filha escrita com tamanha autenticidade e dureza que me deixou positivamente desconsertado.

É claro que existem memórias melhor construídas que outras, mas todas elas se encaixam bem na estrutura de A Segunda Vida de Missy, contribuindo para um inteligente “plantio de sementes” feito pela autora. Ela nos dá alguns fatos ainda nas primeiras páginas, volta a eles em muitos outros momentos, mas não os desenvolve verdadeiramente… até o final. E olha, que surpresa agradável e também chocante é ver como isso foi sendo guardado até que fizesse sentido que se descortinasse na história. A autora permite que a gente se acostume a Missy. Nós visitamos sua casa e convivemos como seus novos amigos e “seu” novo cachorro, vendo como essa “segunda vida” começa para a protagonista ao passo que entendemos a sua trajetória de vida, aquilo que moldou a mulher que ela é no momento e aquilo que, no presente, molda a mulher que está se transformando para o futuro.

A Segunda Vida de Missy é um belíssimo livro sobre a reconexão de alguém com o mundo e consigo mesmo. Missy transforma o seu entorno e é por ele transformada, faz as pazes com quem precisava e segue o conselho que o amor de sua vida lhe deu: deixa o passado ir embora. Ao final do volume, eu estava lacrimejando. Aqui, a gente não tem apenas um elemento emotivo ou de fofura em cena. Além da velhinha desabrochando para uma nova fase, temos uma criança, um cachorro e um grupo de amigos que formam em torno de Missy a essência dessa “segunda vida” (com seus bons e maus momentos), desse despertar, desse renovo que, por sorte, ela teve a oportunidade de viver e a sabedoria para aceitar que, mesmo em avançada idade, era tempo de mudar. Mais uma vez.

A Segunda Vida de Missy (Saving Missy) — Reino Unido, fevereiro de 2020
Autora: Beth Morrey
Publicação original: HarperCollins
No Brasil: Editora Intrínseca, 15 de janeiro de 2021
Tradução: Vera Ribeiro
349 páginas (edição britânica no kindle, lida para esta crítica) e 313 (edição nacional).

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