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Crítica | A Selvagem Perdição: Erro e Ruína na Ilíada, de André Malta

Uma ampla análise dos versos da Ilíada, com foco em questões linguísticas e comportamentais dos seus principais personagens.

por Leonardo Campos
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A primeira vez que tive a oportunidade de contemplar a sabedoria do autor deste livro foi na preparação de uma aula sobre a Odisseia, de Homero. Enquanto assistia ao episódio da série Literatura Fundamental, observei a profundidade do pesquisador em torno do assunto, acadêmico que tratava do conteúdo complexo de maneira leve e fluída, um caso raro no âmbito universitário quando o tema é um clássico deste quilate. Aqui, no entanto, traço um panorama reflexivo de leitura sobre outro conteúdo estudado pelo escritor: a Ilíada, poesia que antecede o retorno de Odisseu. André Malta Campos, professor de língua e literatura grega na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, apresenta em sua extensa publicação A Selvagem Perdição: Erro e Ruína na Ilíada, uma análise profunda em torno de 471 páginas, da poesia homérica, afastando-se de um enfoque técnico sobre sua produção e propondo um mergulho nos conteúdos e na significação deste poema, utilizando como eixo a noção de áte, crucial para entender a moral e a religiosidade da obra de Homero e, por extensão, do espírito grego. Com uma linguagem acessível, o autor busca desmistificar as complexidades do texto homérico, permitindo que leitores não especializados possam apreciar as nuances da obra sem se sentirem excluídos.

Além de explorar a áte, o autor contextualiza as interações entre deuses e mortais, destacando as diferenças fundamentais entre essas relações em Homero e as apresentadas na tradição judaico-cristã. Essa abordagem viabiliza uma compreensão mais rica das motivações e dos conflitos que permeiam as ações dos heróis da Ilíada, iluminando tanto suas virtudes quanto suas falhas. Ao fazer isso, Campos convida o leitor a refletir sobre o sentido da honra, da tragédia e do destino dentro do universo épico, ressaltando a complexidade do pensamento grego antigo e suas implicações morais. Assim, A Selvagem Perdição se revela não apenas uma análise literária, mas também uma porta de entrada para a rica tapeçaria cultural e filosófica da Grécia Antiga. Ao trafegar pela leitura, ora empolgante, ora cifrada para leigos, nos tornamos um tipo de especialista na poesia homérica, em especial, nos cantos trabalhados com mais enfoque pelo autor. O Canto IX da Ilíada é um dos trechos mais emblemáticos e ricos em questões filosóficas e poéticas. Nesta passagem, encontramos a emblemática delegação enviada a Aquiles por Agamêmnon, que busca reconciliá-lo e reverter sua apatia em relação à batalha contra os troianos. Através dos diálogos e da linguagem usada, Homero imerge o leitor em uma reflexão profunda sobre temas como a honra, a amizade, a fúria e a condição humana.

Um dos aspetos mais destacados neste canto é o conceito de honra e como ela molda o comportamento dos guerreiros. A figura de Aquiles personifica a honra, que na cultura grega antiga era a pedra angular da identidade do guerreiro. No Canto IX, essa questão é reexaminada ao se considerar a recusa de Aquiles em retornar à disputa. Ele rejeita as ofertas de Agamêmnon, demonstrando que sua honra foi ferida de maneira irreparável pela ofensa pública que sofreu. Aqui, estamos confrontados com uma reflexão filosófica sobre até que ponto um indivíduo deve ir para preservar sua honra e o que isso significa em um contexto social mais amplo. A decisão de Aquiles de se retirar não é apenas um ato de orgulho, mas um questionamento sobre a validade da dêise (dignidade) em um mundo que constantemente a desafia. Outro elemento significativo no Canto IX é a fúria de Aquiles, que se torna o tema central da “narrativa”. A ira do herói não é apenas uma manifestação de suas emoções, mas também um reflexo das complexidades da condição humana. Ele representa a luta interna entre a racionalidade e a emoção. Durante o diálogo entre Aquiles e os embaixadores, percebemos as tensões entre a necessidade social de se conformar e a intimidade das necessidades pessoais.

A fúria de Aquiles é, portanto, um exame profundo da natureza humana, desafiando o leitor a considerar até que ponto nossas emoções podem nos afastar de ações racionais e altruístas. As questões de amizade e lealdade também são abordadas de forma significativa neste canto. Aquiles e Pátroclo compartilham uma conexão profunda, e o lamento de Aquiles pela morte de seu amigo, que se desenvolverá mais adiante na narrativa, está presente nas entrelinhas do diálogo. Essa amizade é um alicerce sobre o qual Aquiles fundamenta suas decisões, e destaca a importância dos laços pessoais em tempos de guerra. Aqui, Homero não apenas narra a história da Ilíada, mas também instiga uma reflexão sobre a fragilidade das relações humanas em um contexto de conflito. A linguagem poética utilizada por Homero neste canto é rica em metáforas e imagens que intensificam a carga emocional das interações.

A natureza representada no canto, com o mar e as tempestades, serve como um reflexo metafórico da turbulência interna de Aquiles. Essas imagens poéticas não apenas embelezam a narrativa, mas também oferecem uma camada adicional de significado, onde o leitor pode encontrar paralelos entre a violência da guerra e as tempestades emocionais enfrentadas pelos personagens. Além disso, um aspecto filosófico crucial apresentado neste canto é a *efemeridade da glória*. Aquiles é confrontado com a escolha entre uma vida longa e obscura e uma vida curta, mas gloriosa. Essa dicotomia leva a uma reflexão mais ampla sobre o valor da vida e o que significa verdadeiramente ser um herói. O próprio Aquiles pondera sobre o legado que deseja deixar e o impacto que suas escolhas terão não apenas sobre sua vida, mas sobre a história. Essa questão se desdobra em um debate existencial sobre a imortalidade da fama versus a perspectiva perecível da vida, um tema que ecoa através dos séculos na filosofia ocidental. O Canto IX, portanto, não é apenas uma interação entre personagens; é uma rica tapeçaria de complexas questões filosóficas e poéticas. Através da habilidade de Homero em criar diálogos impactantes e ricas imagens poéticas, o leitor é levado a confrontar as tensões da honra, da fúria, da amizade e da efemeridade da vida.

Cada um desses elementos oferece uma janela para a compreensão das motivações humanas e dos dilemas éticos enfrentados no contexto da guerra e da sociedade. Assim, ao analisarmos as questões que surgem no Canto IX da Ilíada, percebemos que a obra de Homero vai muito além da simples narrativa de batalhas e heroísmo. Ela provoca reflexões profundas sobre o que significa ser humano, o peso das escolhas e a busca incessante por significado em um mundo marcado pela transitoriedade. O uso da linguagem poética não apenas embeleza a história, mas também nos convida a uma introspecção em relação às nossas próprias vidas e as decisões que tomamos diante dos desafios que enfrentamos. E o texto de Malta nos permite viajar e querer compreender ainda mais a trajetória e os posicionamentos de personagens icônicos que, muitas vezes, conhecemos mais popularmente pelos filmes e outras traduções contemporâneas.  Um deles é Agamêmnon, rei de Micenas, comandante supremo das forças gregas na Guerra de Troia. Sua posição de autoridade e seu status como rei são inegáveis, mas sua liderança é marcada por falhas significativas que exigem análise.

Um dos principais eventos que destacam sua posição é o conflito com Aquiles motivado pela disputa sobre as prisioneiras de guerra, Briseis, que é a concubina de Aquiles, e Criseis, que Agamêmnon é forçado a devolver ao pai, um sacerdote de Apolo. A recusa de Agamêmnon em compartilhar o prêmio de guerra e seu desejo de manter Briseis para si resultam em um rompimento com Aquiles, levando a este último a se retirar da batalha. Tais ações iniciais não apenas revelam a natureza autoritária e egoísta de Agamêmnon, mas também destacam sua incapacidade de reconhecer a importância dos laços e das relações entre os guerreiros. Por outro lado, Aquiles é apresentado como o maior dos guerreiros gregos, um semideus com habilidade superior em combate. Sua posição é complexa: ele é um herói que luta por honra e reconhecimento, o que é exacerbado pelo insulto público que sofre nas mãos de seu líder. A ira de Aquiles se torna o tema central da Ilíada, e sua decisão de se retirar da batalha não é apenas uma questão de orgulho pessoal, mas reflete uma crise mais profunda de valores e ética entre os guerreiros.

Aquiles valoriza a honra acima de tudo, e sua indignação contra Agamêmnon surge não apenas pela falta de respeito, mas também pela percepção de que Agamêmnon não é digno de sua liderança. A posição de Agamêmnon e Aquiles ilustra uma tensão central na obra: a relação entre autoridade e heroísmo. Enquanto Agamêmnon representa a monarquia e a ordem, Aquiles simboliza a individualidade e o ideal heroico. Essa dinâmica é refletida nos efeitos que suas ações têm sobre seus companheiros de batalha. A retirada de Aquiles não apenas enfraquece as forças gregas contra os troianos, mas também provoca uma série de acontecimentos que culminam na morte de seu amigo Pátroclo. A perda deste personagem é um ponto de virada crucial na narrativa, pois leva Aquiles a confrontar suas próprias decisões e a retornar ao campo de batalha motivado pela vingança, criando um ciclo de dor e destruição que poderia ter sido evitado. A ação de Aquiles de retornar ao combate após a morte de Pátroclo reflete suas profundas emoções e sua conexão com a ideia de destino. Ele se torna um símbolo da fúria e da tragédia da guerra, enquanto, por outro lado, a posição de Agamêmnon continua sendo desafiada. O contraste entre a liderança de Agamêmnon e o heroísmo de “herói do calcanhar” também revela as fragilidades do sistema político e social da época. O desentendimento entre os dois líderes é um microcosmo das tensões maiores que existem na sociedade grega, onde questões de status, honra e poder frequentemente colidem.

Agamêmnon, embora em um papel de líder de tropas, é frequentemente mostrado como inseguro e propenso a agir de maneira impulsiva, enquanto Aquiles, em sua busca apaixonada por honra e vingança, personifica a intensidade emocional que acompanha a figura do herói. No entanto, essa intensidade é também sua tragédia, uma vez que sua busca por vingança e influência sobre o destino o leva a um caminho de autodestruição. O destino de Aquiles, predito por profecias, culmina na sua morte. Nesse sentido, a obra de Homero não apenas nos apresenta os conflitos entre esses dois personagens, mas também questiona os valores que os cercam, como a honra, a lealdade e a liderança. A Ilíada, portanto, não é apenas uma narrativa sobre a Guerra de Troia; é um estudo profundo da psique humana, examinando as complexidades das relações interpessoais e as consequências de nossas escolhas. A posição de Agamêmnon e Aquiles serve como o centro de uma reflexão mais ampla sobre a natureza da liderança e do heroísmo, mostrando que mesmo os maiores guerreiros e líderes podem falhar na busca de seus ideais. Por meio dos conflitos e das resoluções entre Agamêmnon e Aquiles, Homero ilustra a inexorabilidade do destino e o impacto das emoções nas decisões humanas. No final, ambos os personagens são tragicamente falíveis, oferecendo ao leitor uma rica tapeçaria de temas que ressoam até os dias atuais. O poema, portanto, se torna não apenas um relato das atrocidades da guerra, mas também uma profunda meditação sobre a condição humana, as relações de poder e os dilemas morais que continuam a desafiar a humanidade em sua busca por significado e honra, uma história constantemente recontada ao longo da tradição narrativa ocidental.

A Selvagem Perdição: Erro e Ruína na Ilíada (Brasil, 2006)
Autoria: André Malta
Editora: Odysseus Editora
Páginas: 423

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