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Crítica | A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata

por Ritter Fan
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A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata atiça a curiosidade com o título inusitado, fisga o espectador com a sequência inicial em 1941 em que um grupo de amigos da Ilha de Guernsey, voltando de um piquenique, é interpelado por oficiais nazistas e criam a tal sociedade literária ali no ato, prende a atenção com um mistério bem construído e desenvolvido sobre o paradeiro de um dos membros, encanta com a belíssima atuação de Lily James como uma escritora de sucesso que, 1946, se convida para visitar a sociedade literária quando recebe correspondência de um de seus membros e arrebata corações com uma enternecedora história e um lindo desfecho. É o perfeito “filme-armadilha” que deixará qualquer um que não tiver coração de pedra pelo menos com um sorriso no rosto – e talvez uma lágrima furtiva – quando os créditos finais começarem a rolar.

Baseado no romance homônimo escrito por Mary Ann Shaffer que, tragicamente, entre a aceitação da obra para publicação e o pedido de seu editor de proceder a algumas alterações, foi diagnosticada com uma grave doença, o que lhe deu tempo apenas de pedir para que sua sobrinha Annie Barrows, escritora de livros infantis, terminasse o livro para lançamento, o filme, dirigido por Mike Newell, que nos trouxe Quatro Casamentos e um Funeral, Donnie BrascoHarry Potter e o Cálice de Fogo, é delicado e profundamente bonito, sem deixar de lidar com assuntos pesados como a tomada da ilha de Guernsey pelos nazistas, o uso de mão de obra escrava para fortificar a ilha e o dilema de classificar e julgar cada soldado alemão pela suástica que carrega. Situado majoritariamente no ano seguinte ao final da guerra, com a Inglaterra em plena e fervorosa reconstrução, mas com a ilhota no Canal da Mancha “esquecida”, a fita aborda a dureza do renascimento de um país usando um recorte peculiar e pouco abordado, aproveitando-se das belíssimas paisagens do interior da Inglaterra para representar a ilha (curiosamente, ela não foi usada como locação), em uma fotografia de Zac Nicholson (A Morte de Stalin) que alterna entre o delicado uso de filtro para realçar a natureza idílica do local e a pegada mais realista – mas não completamente – dos flashbacks para o período da guerra.

De um lado, há Juliet Ashton (Lily James), escritora bem-sucedida que perdera os pais de forma traumática durante os bombardeios de Londres durante a guerra. Apesar de seu prestígio e dinheiro, ela não se sente bem com a  opulência em que pode viver e os esforços de um país inteiro em reerguer-se depois da devastação. Em plena turnê de divulgação de seu novo livro, capitaneada por seu frenético editor e melhor amigo Sidney Stark (Matthew Goode) e com a proposta de casamento de Mark Reynolds (Glen Powell) no ar, ela decide conhecer a estranha sociedade literária localizada na ilha de Guernsey depois que ela recebe uma carta de um de seus membros, Dawsey Adams (Michiel Huisman), que descobre seu nome e endereço anotados em um livro usado. No momento em que a premissa básica é estabelecida, o que não demora muito a acontecer, todos os ingredientes necessários para o espectador praticamente deduzir os acontecimentos posteriores estão presentes, mas não é o resultado do trabalho investigativo Juliet sobre o passado da sociedade literária que realmente interessa, mas sim sua jornada até lá, que reúne elementos de auto-descoberta, amadurecimento e, também, um senso amplo do panorama histórico em que toda a história está inserida, algo que afeta diretamente cada um dos personagens e oferece uma generosa visão de um momento atípico de se ver em filmes.

Lily James desponta com a construção de uma personagem cativante que, mesmo “pegando na mão do espectador” para levá-lo por sua jornada, oferece várias camadas com que podemos nos identificar. Há o projeto de aristocrata que não consegue se ver no lugar que está marcado nas cartas para seu futuro, há a escritora que quer apenas realmente escrever sobre “fatias de vidas”, há a mulher que não se furta em arriscar e mergulhar de cabeça e de olhos vendados em aventuras, enfrentando rejeição e também rejeitando. Mas falar apenas de James seria injusto com o incrível elenco da fita. Goode, apesar de viver o mesmo “tipo” de personagem em um grande número de filmes, parece estar muito a vontade naquele seu jeito fleumático, mas um tanto esquisito de ser, com uma ótima química nas poucas cenas que divide com James. O menos conhecido Huisman parece, em um primeiro momento, aquele galã clichê que já vimos tantas vezes por aí, mas o ator, graças a um roteiro feito a seis mãos que sabe ritmar o desenrolar de um “mistério”, revela-se bem mais complexo do que deixa entrever nos minutos iniciais.

O restante da sociedade literária é igualmente fascinante. Tom Courtenay como Eben Ramsey, o “inventor” da torta de casca de batata e Penelope Wilton como Amelia Maugery, a anfitriã das reuniões, são os rostos da experiência, de longas vidas vividas com momentos de felicidade entrecortados de tragédia e sacrifício. A sempre excelente Katherine Parkinson vive a solteirona Isola Pribby, um papel que carrega tanta excentricidade quanto ternura, sem jamais descambar para o exagero. Finalmente, há Jessica Brown Findlay como Elizabeth McKenna, a personagem que nasce como um MacGuffin, mas que ganha relevo e estofo ao longo da projeção graças ao delicado trabalho da atriz e a eficiência do roteiro em utilizá-la em momentos precisos.

Em volta disso tudo, há um criterioso trabalho de reconstrução de época tanto em Londres quanto na ilha que coloca o espectador entre dois mundos em ambos os lugares. Ou seja, na cidade grande, visto pelo prisma da alta sociedade, o design de produção de James Merifield e os figurinos de Charlotte Walter procura deslumbrar contrastando a opulência daqueles que passaram a guerra sem “dificuldades” (as aspas valem, pois ninguém passou incólume a ela), o que internaliza um sentimento de culpa em Juliet, com os esforços para reerguer a cidade à sua glória de outrora. Ao revés, em Guernsey, o foco é na humildade das casas e pequenos sítios, com figurinos de enorme autenticidade que procuram estabelecer não a pobreza dos habitantes, mas sim uma vida sem luxo, sem esbanjamento. Ali, é Juliet, em um primeiro momento, que é realmente o peixe fora d’água, algo muito bem representado por seu enorme anel de noivado. Com o tempo, as duas visões opostas vão convergindo sem que sequer percebamos, demonstrando a adaptação por que ambos os lados passam ao longo das pouco mais de duas horas que, por sinal, passam voando.

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata é uma pequena pérola da Sétima Arte que vale cada segundo de investimento do espectador que no mínimo passar os olhos por seu inegavelmente curioso título. Envolver-se na história é uma questão de minutos e sair dela é difícil tamanha a delicadeza com que seus temas são trabalhados e tamanha a dedicação do elenco e equipe técnica.

A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata (The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society, Reino Unido/França/EUA – 2018)
Direção: Mike Newell
Roteiro: Don Roos, Kevin Hood, Thomas Bezucha (baseado em romance de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows)
Elenco: Lily James, Michiel Huisman, Glen Powell, Jessica Brown Findlay, Katherine Parkinson, Matthew Goode, Tom Courtenay, Penelope Wilton, Bronagh Gallagher, Kit Connor, Andy Gathergood, Florence Keen, Nicolo Pasetti
Duração: 124 min.

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