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Crítica | A Tempestade, de William Shakespeare

por Luiz Santiago
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Há uma discussão antiga sobre a colocação de A Tempestade na cronologia das peças de Shakespeare. O centro dessa discussão é de que se trata da última obra solo escrita pelo bardo, defesa que inclusive dá uma das muitas linhas interpretativas para a peça, aquela que enxerga A Tempestade como uma carta de despedida. O fato de Próspero fechar o seu ciclo de vingança e seguindo daí o perdão aos seus desafetos ao longo da vida é muitas vezes visto como uma atitude do próprio Shakespeare diante de sua arte, de seus colegas de profissão, de seus concorrentes em outras companhias teatrais britânicas. E mais ainda, a quebra da varinha, a libertação de todos os espíritos e o desfazer-se do livro de magias coroam essa visão com uma demonstração de desapego do criador diante de tudo aquilo que lhe trazia inspiração, vontade, impulso para criar. Da mesma forma que o tempo de magia de Próspero chega ao fim, alguns acreditam que A Tempestade mostra o tempo de dramaturgo de William Shakespeare sendo encerrado.

Classificada como uma comédia (em relação às peças de Shakespeare e pegando o conceito helênico de classificação para o teatro, entendemos “comédia” aqui como uma história que não termina de forma trágica, que não termina em abundante tristeza, morte, etc.), A Tempestade começa com uma cena intensa, onde antigos inimigos de Próspero estão voltando de um casamento na Tunísia. Quando esse navio passa próximo à ilha onde o antigo Duque de Milão está exilado com sua filha Miranda, levantam-se ondas enormes, cai uma forte chuva, relâmpagos e trovões, tormenta que na verdade é uma farsa realizada por Próspero para atrair esses indivíduos àquela localidade e iniciar o seu processo de vingança. Desde muito cedo na peça o leitor entende que o velho mago não quer apenas vingar-se de seu irmão usurpador e também do rei de Nápoles, que fez parte de todo o complô. Próspero quer recuperar sua posição de direito, mas como não se sente forte o bastante para subir diretamente ao trono, ele usa de um artifício bem curioso para alcançar o que quer.

Eu não conheço ninguém que desgoste de Próspero, mas convenhamos que ele é uma pessoa que atraiu para si muitos de seus dissabores na vida, principalmente considerando a sua péssima e criticável posição como político, deixando o governo do ducado nas mãos do irmão para dedicar-se exclusivamente aos livros, ao estudo da magia, algo que acabaria lhe custando o trono e, por pouco, também a sua vida e a vida de sua filha. Passados 12 anos, ele admite que a Fortuna lhe deu a oportunidade de se vingar e refazer sua vida. O que ele realiza com essa oportunidade é a “matança vários coelhos com uma tacada só“. Para conseguir voltar ao trono, ele prefere fazer Miranda se apaixonar por Ferdinando, o herdeiro, e com isso garantir a posição da jovem ao mesmo tempo que garante a sua. Para conseguir vingar-se Antonio, seu irmão usurpador, e de Alonso, o rei de Nápoles que fez parte do complô, Próspero cria uma espécie de via crucis para esses indivíduos, fazendo-os passar por provações à medida que se aproximam da caverna onde o mago morava. Há aí uma boa jornada de tortura física e psicológica acontecendo, mas esta é apenas parte de uma série de eventos que culminarão com algo que vejo como mais importante na peça: a capacidade de perdoar.

Próspero não se esquece em nenhum momento de tudo aquilo que sofreu, mas ao mesmo tempo não se deixa consumir pela vingança cega. Tem uma conversa muito bonita dele com Ariel, o Espírito do Ar, onde a criatura diz que se fosse humana, se sentiria tocada por tudo aquilo que a Corte de náufragos estava passando na ilha. Em resposta, Próspero diz que ele, como humano, jamais poderia deixar de sentir o mesmo. E desse ponto em diante, vai afrouxando as provações, dando ordens paralelas para Ariel e cuidando para que várias coisas aconteçam até que o reencontro se dá, terminando com os preparativos para a partida do mago dessa ilha e a criação de um mistério: como ele guiaria a sua vida daqui para frente?

Meu único problema com A Tempestade está na primeira parte da Cena 1 do Ato 4. Essa é a minha terceira leitura da peça, e cada uma das vezes que eu li, desgostei ainda mais desse momento, uma espécie de bênção dos espíritos para a união entre Miranda e Ferdinando, onde aparecem Íris, Ceres, Juno e algumas Ninfas para criar um ambiente bonito de reafirmação do amor e estipulação de um novo momento para esses dois, tudo num abraço poético e de caráter fantasioso — não nos esqueçamos que o campo da fantasia é a alma desse enredo. Há citações para o passado da ilha, habitada pela bruxa Sycorax; e o filho dessa mulher, o híbrido Caliban, é o “servo selvagem e rude” de Próspero. Algumas interpretações também enxergam a peça como uma alegoria ao processo de colonização das Américas, sendo Caliban a representação dos nativos (o nome, supostamente, é um anagrama de canibal, uma das nomenclaturas de época para os povos da região do Caribe).

Tirando a citada cena da bênção dos espíritos no último ato, A Tempestade é uma peça muito divertida de se acompanhar. A gente fica feliz em ver os infames sofrendo as provações que Próspero pede a Ariel que os inflija, e o preço pago nesses momentos parece fazer valer bem mais o perdão que vem ao final. É uma história sobre reconhecer erros alheios e os seus próprios erros. E procurar fazer as pazes com todos eles, antes de entrar definitivamente na fase final da vida.

A Tempestade (The Tempest) — Reino Unido, 1610 – 1611
Edição lida para esta crítica: Shakespeare – Teatro Completo: Comédias (Editora Agir, 2008)
Autor: William Shakespeare
Tradução: Carlos Alberto Nunes
50 páginas 

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