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Crítica | A Tragédia de Macbeth

O triunfo de Joel Coen.

por Ritter Fan
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Ao passo que as obras de William Shakespeare estão profundamente enfronhadas na infraestrutura do entretenimento audiovisual moderno, nas mais variadas formas imagináveis, uma adaptação direta em forma de filme e, ainda por cima com o uso do texto original, é um gigantesco desafio, especialmente se o objetivo for alcançar o maior número possível de pessoas. E, apesar de A Tragédia de Macbeth, encenada pela primeira vez em 1606, ser a mais curta tragédia do bardo inglês e de sua premissa ser, mesmo que indiretamente, razoavelmente conhecida, é possível que grande parte do público considere a obra ainda muito hermética, quiçá por vezes sem sequer arriscar a leitura, o que é perfeitamente compreensível.

Joel Coen, pela primeira vez trabalhando na direção e roteiro de um longa sem seu irmão Ethan, tinha, portanto, um grande desafio pela frente, algo que ele começou a enfrentar ao escalar Denzel Washington e Frances McDormand (esposa do diretor e costumeira parceira dele e do irmão em suas produções), dois nomes de peso, para viverem, respectivamente, Macbeth, o general escocês que, depois de cometer regicídio em razão de uma profecia que recebe de três bruxas, torna-se rei, e sua esposa Lady Macbeth, basicamente aquele diabinho no ombro do marido que o fomenta a cometer seu ato de traição. Mas, como seu objetivo era realmente usar o texto original, apenas com pequenas alterações (imperceptíveis, aliás) e, além disso, manter a atmosfera de uma pela de teatro, um fator que normalmente afasta e não atrai espectadores, ele precisava de mais ainda.

Entram, então, o designer de produção Stefan Dechant (pela primeira vez trabalhando com Coen) e o diretor de fotografia Bruno Delbonnel (parceiro de longa data dos Irmãos Coen), profissionais que realizam de maneira absolutamente irretocável a visão do cineasta. Como manter a sensação da existência de um “palco” era importante para o que Coen tinha em mente, todas as filmagens foram feitas em estúdio, com cenários especialmente construídos para a produção, o que imediatamente cria aquela artificialidade necessária para se passar a impressão de espaços cênicos clássicos. Como se isso não bastasse, considerando que esta peça é, talvez, a mais assustadora das obras de Shakespeare pelas mais diversas razões, desde o uso de bruxaria, passando pela violência, chegando até o mergulho nas mentes perturbadas do casal Macbeth, houve a eleição do uso da fotografia em preto e branco com contraste profundo entre as cores principais, de forma a inundar o longa de sentimentos como medo, claustrofobia e ansiedade.

Os cenários de Dechant são um espetáculo à parte, daquele tipo que dá vontade de pausar a projeção somente para observar os detalhes. Claramente inspirado pelo Expressionismo Alemão, especialmente as obras de F.W. Murnau e Fritz Lang, o designer usa a monumentalidade de paredes, portas e escadarias altíssimas para usar o vazio, o oco como elemento que reflete os pensamentos cada vez mais erráticos da dupla principal, ao mesmo tempo que para marcar a imponência e a autoridade da monarquia, gerando o poder que corrompe. E esse vazio todo é ainda amplificado pela quase completa ausência de adereços ou de mobília. Tudo é muito espartano e mesas e cadeiras, por exemplo, só são usadas quando estritamente necessárias, como na sequência em que Macbeth tem uma visão do falecido Rei Duncan (Brendan Gleeson). Até mesmo as superfícies de paredes e chãos são limpas, quase chapadas, sem reentrâncias, de maneira que Delbonnel, então, possa fazer seu show de luzes e sombras com as câmeras, trabalhando o preto e branco e todos os tons entre um extremo e outro de maneira arrebatadora, inclusive quando Coen dirige sua atenção aos breves, mas pesados e profundos solilóquios de Macbeth e Lady Macbeth.

Fazendo a conexão entre cenários, fotografia e atuações, ouvimos a trilha sonora de Carter Burwell, que começou sua carreira junto com os Coen, com Gosto de Sangue, e que, aqui, nos presenteia com um trabalho atmosférico, solene, mas com uma qualidade sobrenatural, fantástica, diversas vezes marcada pelo violino solo de Tim Fain (Cisne Negro) que parece evocar uma terra de fantasia que poderia muito bem ser fruto da mente de J.R.R. Tolkien (que, aliás, bebeu muito da fonte shakespeariana, inclusive e notavelmente Macbeth). Ou seja, estamos, mas ao mesmo tempo não estamos exatamente na Escócia e vemos, ao mesmo tempo que não vemos um castelo mágico, tudo graças ao trabalho de Burwell que sabe ser discreto quando precisa e explosivo quando essencial, inclusive usando os acordes das composições para dar “voz” ao uso constante da falácia patética que faz com que os elementos naturais – vento, chuva, animais e vegetação – refletirem os eventos do longa, exatamente como brilhantemente acontece na peça.

Em termos de atuação, creio que seja chover no molhado dizer que Washington e McDormand estão soberbos em seus respectivos papeis. Sabe aquele momento em que o filme parece curto demais e queremos mais tempo dos atores em tela? Pois bem, esse é um dos casos. E o melhor é que a dupla madura de atores não vive o casal regicida na idade em que em tese eles deveriam ter, mas sim em suas próprias idades, o que exigiu diversas pequenas alterações textuais, notadamente quando a escolha de se ter filhos é mencionada, além de semblantes naturalmente mais maduros, serenos quando possível, sofridos pelo tempo que passou quando o texto pede. No entanto, seria injustiça afirmar que a dupla protagonista carrega sozinha o filme nas costas, pois eles só realmente conseguem fazer o que fazem graças a um elenco de apoio que chega a ser assustador de bom em sua capacidade de ser invisível e de preparar o terreno para Washington e McDormand. Falo aqui não só do já citado e veteraníssimo Brendan Gleeson que basicamente faz uma ponta como o rei que é assassinado, como também de Alex Hassell como Ross, conselheiro do rei que tem sua presença ampliada de maneira muito inteligente pelo roteiro de Coen, Bertie Carvel como Banquo, melhor amigo de Macbeth e o primeiro a perceber que ele cometeu o crime, Corey Hawkins como o valente Macduff e, finalmente, Harry Melling como Malcolm, filho de Duncan e legítimo herdeiro do trono. Sem essa constelação de atores ao redor, os protagonistas teriam espaços cênicos realmente vazios e desprovidos de vigor dramático para darem seu show.

Mas é claro que eu não poderia encerrar a crítica sem falar da dramaturga greco-americana Kathryn Hunter no papel da bruxa que se multiplica em três e também do “homem velho” que tem discreta importância na história. Para começar, a(s) bruxa(s) captura de imediato a imaginação do espectador pela forma inusitada, bizarra, diabólica como Hunter a constrói, seja na assustadora inflexão de sua voz, seja o que ela faz com seu corpo em termos atléticos (pensem em Gollum, só quem sem CGI), seja pela incrível maquiagem com que atua. Novamente, chega a ser frustrante (no sentido mais do que positivo) que ela só tenha um punhado de cenas em que aparece, ainda que sejam momentos absolutamente inesquecíveis pela combinação de seu trabalho com a fotografia de alto contraste de Delbonnel.

A Tragédia de Macbeth é o triunfo de Joel Coen. Um filme que em momento algum se entrega a maneirismos de blockbusters modernos ou trai suas raízes shakespearianas – manutenção do texto original quase integral e da atmosfera teatral – mas que consegue, a cada fotograma, criar um espetáculo completo audiovisual que eleva a forma à substância. O bardo britânico sairia emocionado – e assustado – da experiência, tenho certeza.

A Tragédia de Macbeth (The Tragedy of Macbeth – EUA, 2021)
Direção: Joel Coen
Roteiro: Joel Coen (baseado em obra de William Shakespeare)
Elenco: Denzel Washington, Frances McDormand, Alex Hassell, Bertie Carvel, Corey Hawkins, Harry Melling, Brendan Gleeson, Kathryn Hunter, Miles Anderson, Matt Helm, Moses Ingram, Ethan Hutchinson, Scott Subiono, Brian Thompson, Lucas Barker, Stephen Root, Robert Gilbert, James Udom, Richard Short, Sean Patrick Thomas, Ralph Ineson, Jefferson Mays, Susan Berger, Wayne T. Carr, Nancy Daly
Duração: 105 min.

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