Home DiversosCrítica | A Vida de Chuck, de Stephen King

Crítica | A Vida de Chuck, de Stephen King

Viver a vida.

por Ritter Fan
6,3K views

Chega a ser inacreditável o ritmo de escrita e a imaginação de Stephen King. Pessoalmente, não sou um grande fã ou leitor dele, mas admiro muito sua capacidade de escrever como se não houvesse nenhum esforço nisso, como se colocar palavras no papel fosse parte essencial de sua vida pessoal e profissional, o que eu não tenho a menor dúvida de que é. E é muito curioso como ele, mesmo tendo se notabilizado por livros de suspense e horror, volta e meia dispensa o gênero e trafega por outros completamente diferentes, seja enveredando por mistérios ou pura ficção científica, seja por dramas muito bem construídos, muitas vezes em forma de contos ou novelas. É dessa sua veia “paralela”, digamos assim, que obras como Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank, O Corpo e À espera de um Milagre nasceram, inspirando as inesquecíveis versões cinematográficas Um Sonho de Liberdade, Conta Comigo e a homônima À Espera de um Milagre.

Em abril de 2020, ainda bem no começo do horror da pandemia de COVID-19, King lançou Com Sangue (If It Bleeds), compilado de quatro contos inéditos seus, um deles A Vida de Chuck que é objeto da presente crítica e o único que não é de horror ou suspense no grupo, ainda que haja elementos sobrenaturais. A novela já chama atenção de imediato pela sua estrutura pouco usual, com o autor contando a história de Chuck em ordem cronológica inversa, iniciando pelo Ato III e terminando no Ato I. Mas não é apenas esse artifício – que é mais do que um artifício, vale dizer – que faz o leitor levantar a sobrancelha em sinal de interesse, pois ele começa literalmente no apocalipse, com notícias de fenômenos estranhos pelos EUA, inclusive e especialmente a destruição da Califórnia, o fim das terras aráveis e uma internet prestes a parar de funcionar. O protagonista, aqui, é Marty, que segue sua vida normal da melhor maneira que pode, mas que começa a constatar a crescente presença de anúncios que agradecem um homem de óculos de armação preta chamado Chuck pelos seus 39 anos de vida.

O que é singular nessa narrativa de fim de mundo não é o quanto ela parece próxima de nossa realidade, mas sim por retratar a forma como isso impacta Marty e outros habitantes da cidade onde mora, inclusive sua ex-esposa que é enfermeira do hospital local e vê a taxa de suicídios subir de maneira alarmante. Não há desespero, saques em supermercados, correrias ou outros aspectos que seriam comuns em histórias do gênero. É a vida que segue, com Marty fazendo o melhor para viver seus instantes finais enquanto, misteriosamente, a narrativa corta para Chuck, em coma, morrendo em uma cama de hospital depois que os aparelhos são desligados com anuência da família. A conexão de uma coisa com a outra, se não ficar clara já no Ato III, que, relembro, é o primeiro, ficará na medida em que a história continua.

E ela continua com um retorno ao passado no Ato II em que vemos Chuck em uma convenção de contadores em Boston de repente parando para dançar no meio da rua ao som da bateria de um músico que ali se encontra e, depois, no Ato III, em que Chuck, criança, depois de perder seus pais, vai morar com seus avós paternos em uma bela casa e aprende a dançar com a avó e pergunta sobre o mistério da cúpula da residência onde ninguém pode entrar, esse último sendo o único aspecto do conto que resvala, mas bem de longe, no suspense. Não entrarei em detalhes sobre o que ocorre e como o fim de mundo do início do filme se conecta com a vida de Chuck, mas, apesar do apocalipse, da morte de Chuck jovem e das mortes que cercam o Chuck criança, A Vida de Chuck não é, pelo menos ao meu olhar, uma história pessimista. O que eu extraí da narrativa, por mais sentimentalmente barato que isso possa ser, é uma exortação à vida, um desejo de Stephen King que nós vivamos nossas vidas da melhor maneira possível, lembrando que “da melhor maneira possível” não é, de forma alguma, perseguindo fama e fortuna ou mesmo a tão enevoada “felicidade”. Viver a vida é, simplesmente, usando o exemplo da novela, dançar na rua ao som de música sem se preocupar com o que os outros ao redor vão achar ou um mero olhar para a frente na certeza de que é essa é a direção se vai naquele momento.

Leitores mais cínicos provavelmente acusarão Stephen King de ser melodramático em A Vida de Chuck e eles não estarão totalmente errados. Mas King não se importa com isso e, com sua novela, está vivendo a sua vida do melhor jeito que pode e pedindo para que façamos o mesmo, inclusive quando o acusamos de ser excessivamente sentimental. Afinal, viver a vida é isso, caminhar um passo após o outro tentando se conectar com outras pessoas ou simplesmente não se importar com o que essas pessoas têm a dizer sobre você. Lembrem-se: cada um de nós contém multidões e King contém mais multidões do que a média.

A Vida de Chuck (The Life of Chuck – EUA, 2020)
Contido em: Com Sangue (If It Bleeds)
Autoria: Stephen King
Editora original: Scribner
Data original de publicação: 21 de abril de 2020
Editora no Brasil (compilação Com Sangue): Editora Suma (Companhia das Letras)
Data de publicação no Brasil: 04 de setembro de 2020
Tradução: Regiane Winarski
Páginas: 128

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais