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Crítica | A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha

por Luiz Santiago
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Eurídice tinha aprendido uma das mais antigas técnicas de guerrilha feminina: o combate por repetição, aquele que leva os homens a dizer sim.

Romance de estreia de Martha Batalha, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2016) teve primeiro a sua penetração no mercado editorial estrangeiro (Alemanha, França, Espanha) antes de chegar ao Brasil pela editora Companhia das Letras. O núcleo da obra é formado pelo curso de quatro décadas da História do Rio de Janeiro, dos anos 20 aos anos 60 (embora existam flashbacks no livro para diversos momentos do passado) e em muitos sentidos é possível identificar o leve flerte da obra com os romances históricos, embora o tratamento da autora e o tema principal do volume sejam outros.

A grande temática de A Vida Invisível é a vida das mulheres; a estrutura, ideologia e mudanças na vida comunitária e familiar do Rio no início do século XX e, no todo, os muitos aspectos das relações pessoais, dentre as quais as relações amorosas/matrimoniais recebem maior atenção da autora. É a partir de um recorte da vida da protagonista que mergulhamos nessa saga, e dela partimos para situações Universais e atemporais, desde as inúmeras facetas do machismo até o conflito de gerações e as mudanças pelas quais todos nós passamos à medida que envelhecemos, ajustando-nos com os novos tempos, procurando não enlouquecer e, acima de tudo, a felicidade.

Exposta de maneira objetiva, a temática do livro parece um clichê estafante, mas não é o caso. Martha Batalha transforma a relação entre Eurídice e sua irmã Guida em algo profundamente interessante para o público e esta relação, apresentada com uma separação já na página inicial, irá marcar os melhores momentos do livro, pois veremos a vida dessas duas irmãs mostradas em momentos distintos; vidas que estiveram unidas pela felicidade da infância e da adolescência; vidas que foram abaladas pelas decisões questionáveis de uma, pela decepção emocional e moral de outra e, por fim, vidas que se reencontram como parte de um “plano geral” do Universo, justamente em um momento em que mais precisavam uma da outra.

As coincidências que vemos aparecer não incomodam porque são recheadas de plausibilidade, seja pela maneira real com que a autora trata o seu tema (o cotidiano das das mulheres em um tempo onde não podiam ser nada além do que seus maridos, pais ou irmãos quisessem), seja pelas consequências que esses eventos acabam tendo, de modo que todas as ações acabam compensadas de alguma forma, o que ajuda a perdoar certas facilidades do texto. O único ponto que, para mim, acabou sendo imperdoável está ainda na primeira parte e é quando a autora nos conta a vida da maior fofoqueira do bairro, a triste Zélia. O flashback e os detalhes para a jornada dessa personagem se tornam soltos e inúteis em todo o livro, algo que não vemos acontecer com nenhuma outra regressão para a vida de uma mulher da cidade que tenha tido contato com Eurídice ou Guida.

O ritmo narrativo de Martha Batalha é exemplar em todo o núcleo da protagonista, embora se desequilibre um pouco quando dá atenção a outras personagens. O núcleo de Guida começa sofrendo um pouco disso também, mas logo o texto entra nos trilhos e estamos completamente fisgados pelo que aconteceu à irmã ausente, até que no final as reticências e as elipses voltam a atrapalhar um pouco a nossa visão para o “final” da personagem. Já em relação a Eurídice, mesmo o texto nos deixando em um ambiente aberto e com uma nota de diversas possibilidades para o fim de sua vida (todas interessantes, embora não tão fortes a ponto de substituir com folga um final definitivo), consegue ser um bom encerramento.

No decorrer da leitura, nos deparamos com citações, festas e ambientes onde aparecem ou são citadas a presença de Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Olavo Bilac, Angelo Agostini, Santos Dumont e até Machado de Assis, que surge brevemente de polainas num baile, apenas para reclamar do barulho (claro!). Como disse no começo, esse flerte com o romance histórico torna A Vida Invisível ainda mais vibrante e relacionável. Os ajustes políticos brevemente descritos na obra (o início do governo Vargas e o golpe de 64 são brevemente colocados em cena), a troca de favores entre os muito ricos e o Poder Federal, a divisão de classes claramente definida pela ocupação geográfica do Rio de Janeiro e a passagem do dinheiro de uma classe ou bloco ideológico para outro emprestam uma atmosfera que entendemos muito bem, não só por ser parte de nossa história, mas porque vivemos nela até hoje.

E é também com esse espírito que enxergamos a luta, o choro, os risos e as conquistas das mulheres do livro acontecendo ao longo de nossa História. Um processo lento, fortemente marcado pela palavra “não“, mas com alguma bandeira de direito civil e humano erguida ao final de um ciclo. Acima de tudo, o livro mostra dramas pessoais que não são exclusivos de um gênero, classe ou ideologia, e é exatamente o que faz da obra uma jornada gratificante. Neste livro de estreia, Martha Batalha consegue explorar uma realidade de modo honesto e inteligente, mostrando o quão ridículos e risíveis são certos pensamentos e hábitos culturais, ao mesmo tempo que coloca em perspectiva o peso e as dores causadas por esses mesmos hábitos, chamando a atenção para a manutenção de alguns deles muito tempo além do que deveriam durar. Um aceno para a luta que não deve terminar tão cedo, pois o mundo está cheio de Eurídices com suas genialidades aprisionadas e suas vidas invisíveis esperando apenas a morte para que, enfim, recebam um pouco de atenção.

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (Brasil, 2016)
Autora: Martha Batalha
Editora: Companhia das Letras
192 páginas

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