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Crítica | A Vida Invisível

por Luiz Santiago
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A Vida Invisível é um filme sobre mulheres, relações femininas e sororidade em um mundo de homens. Adaptação do romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2016), de Martha Batalha, a fita acompanha duas irmãs nascidas no Rio de Janeiro, filhas de portugueses, que passam boa parte da vida acreditando que a outra está vivendo aquilo que sempre sonhou, uma muito distante da outra.

Dirigido por Karim Aïnouz, o longa adota um caminho bem diferente daquele que temos no livro, mas a essência — a única coisa que realmente importa dentre os ingredientes de uma adaptação — permanece aqui, com novos relevos, cores e caminhos, de certa forma, até mais melancólicos, tristes e reais que os do original. O diretor nos apresenta a um alegre Universo familiar marcado pelas restrições na educação dos filhos, no início dos anos 1950, e já nesse primeiro momento percebemos a forte ligação entre Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), ambas as atrizes em performances excelentes, especialmente na representação de momentos de sofrimento e pesar.

Um dos pontos fortes da película é a fotografia de Hélène Louvart (Pina, Família Submersa, Lazzaro Felice), que escolhe um contraste interessante no início: o ambiente natural onde as irmãs se perdem uma da outra e o corte para o ambiente do lar, mais escuro, quase ameaçador, apesar das relações amigáveis entre todos ali. As confidências entre Eurídice e Guida são colocadas em linhas rápidas e o roteiro não perde tempo fazendo apresentações simples: todos são muito bem contextualizados e vamos aprendendo um pouco de cada um compassadamente. Infelizmente, em momento avançado do enredo, a simplicidade didática irá atacar com força, anunciando e explicando mais de uma vez a morte de uma personagem e a mudança de casa empreendida por outro. À parte esse momentos, o filme exige bastante atenção do espectador para que acompanhe o andar da carruagem, sendo as elipses e outros ajustes espaço-temporais feitos de forma inteligente, sem obviedades narrativas.

Assim como no livro, o texto de A Vida Invisível escancara uma porção de comportamentos femininos, fazendo uma espécie de ajuntamento para arquétipos de mulheres brasileiras (cito o recorte do roteiro aqui, mas o tratamento dramático na obra é Universal), falando da mulher abandonada grávida, dos pais e sociedade que rejeitam a filha grávida, do abandono de filhos por mães miseráveis, da tentativa (e comentários) a respeito do aborto, de mulheres que se ajudam nas mais diversas situações, todas lidando com tipos distintos de homens ao longo de suas vidas, quase sempre em algum tipo de violência, ameaça ou medida de força, diante das quais quase sempre saem perdendo. A obra expõe situações para os mais diversos tipos de homens e mulheres, cujas relações conhecemos muitíssimo bem, seja por observar em nosso meio social, seja por ouvir falar a respeito.

O elenco está quase que inteiramente aplaudível aqui, especialmente as jovens atrizes que interpretam as irmãs e, claro, Fernanda Montenegro, que aparece brevemente e dá um show de emoção, olhares, gestos, frases ditas em um nível de ternura e saudade que desmontam qualquer um. Meu único senão aqui é em relação a Gregório Duvivier, mas devo deixar claro que esta não é uma exposição técnica e sim puramente pessoal. Por gostar e estar acostumado com o ator em trabalhos cômicos (ou às vezes nem tão cômicos assim, como em Apenas o Fim, por exemplo), eu tive uma real dificuldade de comprar o seu personagem nesta obra. Reconheço que o ator compõe bem esse homem pacato, com machismo disfarçado num tipo de infantilidade comportamental e até emocional que não muda, mesmo quando ele envelhece. Mas no todo, foi uma experiência relativamente estranha acompanhá-lo nesse tipo de papel, especialmente antes do bigode para o Antenor envelhecido.

Dos sutis saltos que o filme faz no meio do caminho, os espectadores podem tirar diferentes impressões. Todos funcionam bem e recebem um excelente tratamento da montagem, fazendo-nos aproveitar a variação de cor na fotografia, a variação da direção de arte e dos figurinos (acompanhando a passagem dos anos) e, até certo ponto, as datas lidas por Guida em off, enquanto escreve as cartas para a irmã. O último salto, porém, é o que mais estranheza causa e Aïnouz foi muito inteligente em usar Fernanda Montenegro justamente nesta parte, para segurar a atenção e o texto aí exibidos, já que a mudança realmente causa um impacto no espectador e boa parte dele não é exatamente positivo. 

Como a música para piano que exige silêncio em muitos momentos da obra — o último dele não totalmente aproveitado pelo diretor para ligar alguns pontos, vale dizer –, o espectador encontra aqui tempo para pensar, para acompanhar o sofrimento e a luta diária dessas mulheres comuns forçadas a viver invisíveis ou afastadas umas das outras. Para o momento em que chega aos cinemas (2019), especialmente no Brasil, o filme tem um significado imenso e triste, porque os valores que garantem a vida invisível para muitas mulheres recebem hoje louvor e grande exposição pelo país afora. O pesar e a raiva aqui gerados por esta situação alcança um patamar maior, de luta, tanto de homens quanto das mulheres, para tornar visível todas as vidas. E para que ninguém mais seja privado de se conectar, amar e viver ao lado de quem ama.    

A Vida Invisível (Brasil, Alemanha, 2019)
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz, Murilo Hauser, Inés Bortagaray (adaptado de obra de Martha Batalha)
Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Fernanda Montenegro, Gregório Duvivier, Antônio Fonseca, Flávia Gusmão, Bárbara Santos, Nikolas Antunes, Márcio Vito, Maria Manoella, Flávio Bauraqui, Cristina Pereira, Gillray Coutinho
Duração: 139 min.

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