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Crítica | A Vida Marinha com Steve Zissou

por Gabriel Carvalho
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“Isto é uma aventura.”

Ao notarmos quais foram as inspirações de Wes Anderson para a realização de A Vida Marinha com Steve Zissou, percebemos a importância definitiva do longa-metragem para o próprio diretor, sendo, definitivamente, a homenagem das homenagens que o cineasta costuma imprimir ao explorador sub-aquático Jacques Costeau. Por exemplo, no longa-metragem Três é Demais, o protagonista Max Fischer tem um encontro ocasional com uma linha escrita por ele, inspiradora: “Quando um homem, não importa a razão, tem a oportunidade de ter uma vida extraordinária, ele não tem direito de mantê-la para si mesmo”. Anderson quer levar essa vida extraordinária de Costeau ao seu público. Porém, naquele que teria de tudo para ser um dos seus grandes longas-metragens, depois do excelente Os Excêntricos Tenenbaums, Anderson encontra os primeiros vestígios de uma obra sufocada pelas próprias características especiais do diretor, um dos mais reconhecíveis e interessantes de sua própria geração, além de, certamente, um dos mais diferentes e autorais. O cineasta flerta com águas desconhecidas, mas não tem coragem de adentrá-las.

O sufoco, porém, é em relação à linguagem, visto que o diretor é conhecido por colocar os seus atores em posições mais contidas, sem expressar tantas emoções de uma forma mais fácil. A escolha de Bill Murray para o papel de Steve Zissou, dessa forma, é espetacular, pois Bill Murray é um ator mais contido, também conhecido por trazer um semblante de palhaço triste, sendo que tristeza internalizada e Wes Anderson são forças da natureza que interagem extremamente bem. Quanto mais longe da costa Steve está, mais perdido o personagem se encontra. Já Owen Wilson, interpretandoo filho biológico de Zissou, Ned Plimpton, é outro destaque nesse quesito, fomentando um diálogo entre pai e filho dos mais honestos, longe de ser o mais “real”, mas bastante verdadeiro. Ademais, as participações diegéticas de Seu Jorge, interpretando um dos membros da equipe Zissou, também entendem essa mística de Anderson, mesclando-se a ela justamente pelo trabalho do músico ser sereno, interpretando, em português, canções de David Bowie – um artista soberbo na postura que imprime. Ao olharmos para as estrelas, temática recorrente da carreira de Bowie, Wes Anderson, porém, enxerga o mar.

O que acontece, contudo, que prejudica o resultado da fita final não está na jornada desesperadora que Steve Zissou vive, mas o fato de Anderson perder a mão, confundindo o espectador entre a contenção do protagonista e os sentimentos dele. Se em termos visuais, a analogia entre Zissou e Costeau é bastante óbvia, com o gorro vermelho e o conjunto azul, uniformes do personagem e de toda a sua equipe, também sendo parte da icônica vestimenta do oceanógrafo, o próprio histórico deles encontra pontos semelhantes. Wes Anderson apega-se a isso e puxa uma virada na narrativa, entretanto, insensível, mais factual que emocional. Estamos diante de um homem destinado a capturar em imagem, como capítulo final de seu documentário, um animal magnífico, responsável por ter matado seu melhor amigo. Quando chega, finalmente, a hora de observar o majestoso, o cineasta demonstra não ter costurado perfeitamente bem o ápice emocional do longa com os acontecimentos anteriores. O encontro deveria ser o término de uma angústia. Todavia, estamos mais observando do que sentindo qualquer coisa. A contenção, nesse caso, desentendo a proporção de certo desastre, não é um casamento bem sucedido.

Wes Anderson, dessa forma, também é um diretor bastante apegado, não apenas criando uma identidade própria aos seus longas-metragens, dificilmente distorcendo-a, como mantendo castings bastante parecidos, indo muito além de apenas uma musa cinematográfica – em A Vida Marinha, Bill Murray, Anjelica Huston e Owen Wilson, amigo próximo de Anderson, retornam, assim como ainda retornariam. Enquanto outros atores são escolhidos depois dos papéis terem sido criados, o trio citado, neste filme, foi imaginado já no roteiro, contando ainda com a colaboração de Noah Baumbach, outra figura que rondeia bastante Anderson. Sendo assim, a lealdade do diretor ao seu mundo imaginado é bastante perceptível. A questão é que, com isso, o diretor esquece de verdadeiramente ousar, permanecendo com as mesmas batidas, as quais, se não fossem muito boas, não fariam o sucesso que fazem. Enquanto em Moonrise Kingdom, o diretor desenvolve um relacionamento amoroso extremamente crível, sob a mesma ótica de A Vida Marinha e de outros filmes seus, a contenção de sentimentos externalizados não funciona nesta fita, quando olhamos ela sob uma visão geral.

Em relação a temática,  disfunções familiares são recorrentes, com a contenção sendo uma maneira do diretor caminhar com tranquilidade pelo discurso proposto, sendo um desafio a mais nos fazer comprar – e conseguindo – relações humanas à base do “inumano”. Ao mesmo tempo, trazendo o retorno de personagens disfuncionais, Wes Anderson recria um mundo bastante absurdo, com sequências inteiras completamente inimagináveis acontecendo. O mundo inteiro está rondando a equipe do protagonista, os personagens estão no meio da tela, enaltecidos, mas a reação deles não poderia ser da mais contrastante, reforçando tudo o que está sendo criado justamente quando não importa-se com o imaginário.  O absurdo do diretor não é o exagero performático, mas a naturalização do artificial humano a momentos grandiosos que estão acontecendo. Por exemplo, o resgate que acontece no meio do filme traz muito disso, invocando um humor inerente a esse olhar quase juvenil de um momento muito mais sério – a violência assumida nos filmes de Anderson é inocente -, assim como, inicialmente, Steve Zissou aponta uma arma para a jornalista Jane (Cate Blanchett) como se nada fosse.

Curiosamente, contrariando a ótica desse sufocamento, Anderson, aqui, permite-se movimentar mais a câmera, criando uma solução interessante para o escopo que aborda. O grande costume do diretor em transformar ambientes em casas de boneca, dividindo-os ao meio e explorando-os visualmente, retorna, mas a maneira, mais adequada à proposta do filme, é diferenciada. A inquietude do mar não permite que a câmera de Anderson seja seca, balançando-se. Mesmo assim, o texto primoroso conta com situações que nos guiam pelo longa-metragem com suavidade, sem que a história seja desinteressante em ponto algum. O pecado de Wes Anderson é sufocar o seu filme com certos maneirismos que funcionam perfeitamente se usados com mais atenção. O resultado, porém, são alguns dos personagens coadjuvantes menos extraordinários – o triângulo amoroso do longa-metragem simplesmente não funciona – da carreira do diretor, ainda longe do medíocre. As figuras ainda são riquíssimas – Willem Dafoe deveria ter recebido mais tempo de tela -, a história é gostosa de acompanhar, o universo é formidável – excelente uso de stop-motion – mas A Vida Marinha desentende como mergulhar fundo.

A Vida Marinha com Steve Zissou (The Life Aquatic with Steve Zissou) – EUA, 2004
Direção: Wes Anderson
Roteiro: Wes Anderson, Noah Baumbach
Elenco: Bill Murray, Owen Wilson, Anjelica Huston, Cate Blanchett, Willem Dafoe, Jeff Goldblum, Michael Gambon, Noah Taylor, Bud Cort, Seu Jorge, Robyn Cohen, Waris Ahluwalia.
Duração: 119 min.

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