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Crítica | A Volta ao Mundo em 80 Dias (1956)

por Ritter Fan
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A segunda adaptação cinematográfica de A Volta ao Mundo em 80 Dias, o famoso romance aventuresco que o visionário Jules Verne escreveu em 1873, foi uma verdadeira obsessão para seu produtor Mike Todd, quase que refletindo, na vida real, as características mais salientes do excêntrico Phileas Fogg, protagonista da história. Afinal, o criador do ambicioso formato widescreen de 70 mm Todd-AO chegou até mesmo a vender sua participação na invenção para financiar a adaptação, quase falindo no processo.

Mas sua perseverança pagou dividendos, pois o filme, apesar de sua longuíssima duração, capturou a imaginação do público da época que, quando de seu lançamento, lotou todas as sessões das salas de cinema por semanas a fio, tornando a obra uma das mais bem sucedidas em seu ano. E, considerando a ambição de tudo que é mostrado na tela, chega a ser inacreditável que tudo foi filmado em apenas 75 dias, especialmente levando em conta as locações em 13 países e a construção de 140 sets de filmagem e tudo custando, no máximo, seis milhões de dólares (para fins comparativos, Os Dez Mandamentos, que concorreu com A Volta ao Mundo – e perdeu – ao Oscar de Melhor Filme no ano seguinte, custou 13 milhões).

Para capitanear o gigantesco elenco repleto de grandes estrelas da época e de décadas anteriores fazendo pequenas pontas, o britânico David Niven foi escalado no papel de Fogg, mas seu protagonismo foi, de certa forma, abafado pela presença mais destacada e magnética do mexicano Cantinflas, então no auge de sua popularidade, como Passepartout, personagem que teve seu papel muito ampliado justamente para acomodar o astro, o que de certa forma acabou entregando-lhe o protagonismo. Além da dupla principal, há a presença melancólica de Robert Newton como o Inspetor Fix, que desconfia que Fogg fora responsável por um assalto a um banco britânico e faz de tudo para prendê-lo durante a viagem. Newton, que lutava contra o alcoolismo, foi escalado sob a condição de que não bebesse durante a fotografia principal, algo que cumpriu com louvor somente para, infelizmente, falecer antes do filme ser lançado. Finalmente, a única representante feminina de monta da fita é Shirley MacLaine (quatro anos antes de seu sucesso em Se Meu Apartamento Falasse) como, pasmem, uma princesa indiana, com direito até mesmo à maquiagem para alterar sua pigmentação.

Orbitando ao redor da quadra principal, há um sem-número de atores que estão na obra no estilo “onde está Wally?”, para o espectador apontar para a tela e falar seus respectivos nomes em admiração. De John Gielgud logo no comecinho, passando por John Carradine, Noël Coward, Marlene Dietrich, Peter Lorre, Cesar Romero, Frank Sinatra e chegando até mesmo a Buster Keaton, então com 61 anos, como, claro, um condutor de trem, o filme é um “quem é quem” interminável que consegue divertir justamente por usar esses artifícios então razoavelmente comuns em obras dessa natureza a ponto de ganhar até um nome, os make work films.

Outro aspecto que certamente contribui, à época, para o sucesso da obra além da caça aos atores famosos e a pegada descompromissada de Sessão da Tarde do roteiro, foi a literal volta ao mundo que a obra proporciona. Os protagonistas passam primordialmente pela França, Espanha, Índia, Hong Kong, Japão e Estados Unidos e os espectadores ganham vislumbres de elementos caracterizadores de cada país. Claro que os estereótipos reinam, já que, na Espanha, o que existe é música flamenca e touradas (aliás, a longuíssima cena de tourada pode até ser cansativa, mas foi um tour de force impressionante, com 10 mil extras contratados para cercar a praça de uma cidade espanhola) e, na Índia, o que vemos são vacas sagradas, elefantes e, claro, os Tugues, fraternidade assassina que realmente existiu e que aparece querendo sacrificar a princesa Aouda de MacLaine. Mas, se o espectador moderno conseguir imaginar-se em 1956, verá o valor disso tudo para uma plateia que não tinha o mundo nas pontas dos dedos ou mesmo a possibilidade moderna de viajar.

No entanto, A Volta ao Mundo em 80 Dias é muito mais uma curiosidade cinematográfica repleta de artifícios para atrair o público do que um filme com os predicados de um grande épico da época, sendo até insultante que ele tenha levado o Oscar de Melhor Filme no lugar do já citado Os Dez Mandamentos (ou, convenhamos, qualquer um dos demais concorrentes: Sublime Tentação, Assim Caminha a Humanidade e O Rei e Eu). Trata-se de uma obra divertida e ponto final. Não há nada que vá além disso, já que o roteiro é insosso, lento e linear até não poder mais; os desafios nunca consegue trazer um mínimo de sensação de perigo; a comédia corporal de Cantinflas tentando fazer uma impressão de Charles Chaplin simplesmente não funciona (Keaton, nos poucos segundos em que aparece e fazendo um papel sério, é muito melhor do que o ator mexicano) e não há uma nesga, por mais breve que seja, que resvale mesmo que de maneira distante em comentário ou crítica social ou política para além das estocadas óbvias – e sem um pingo de “semancol” – que Fogg faz ao “primitivismo” dos americanos quando eles aportam em São Francisco. Nem mesmo o suspense sobre a chegada de Fogg de volta ao seu país natal e se ele está ou não ainda em tempo de ganhar a aposta que o levou à volta ao mundo tem algum peso dramático ou cômico.

Mas isso não quer dizer que o lado da diversão não seja genuinamente divertido. Mesmo com três horas de duração – o que inclui uma abertura em que ninguém menos do que o famoso jornalista Edward R. Murrow, vivendo ele mesmo, apresenta o curta Viagem à Lua, de George Méliès – há momentos memoráveis em termos técnicos como a já citada tourada na Espanha e a aventura na ferrovia atravessando os EUA, a surreal caracterização de McLaine como uma princesa indiana e, depois, Peter Lorre como um japonês (esse tipo de coisa fulminaria os que levantam, de maneira extremada, a bandeira do politicamente correto) e o melhor momento de todos: Fogg comprando o navio à vapor onde está e mandando colocar tudo o que pega fogo na caldeira, o que resulta em uma incrível e muito bem executada desmontagem náutica diante das câmeras.

A Volta ao Mundo em 80 Dias, com suas três horas, quase parece acompanhar a viagem de Fogg e Passepartout em tempo real, cansando rapidamente o espectador que não conseguir extrair divertimento da proeza técnica que foi colocar esse filme na lata de maneira coerente e da caça aos atores famosos que populam a história em um desfile sem fim. É uma Sessão da Tarde divertida até, mas não o suficiente para justificar sua lentidão e sua incapacidade de tornar a narrativa algo mais do que um passeio à la National Geographic por curiosidades do mundo.

A Volta ao Mundo em 80 Dias (Around the World in 80 Days, EUA – 1956)
Direção: Michael Anderson, John Farrow (não creditado)
Roteiro: James Poe, John Farrow, S.J. Perelman (baseado em romance de Jules Verne)
Elenco: David Niven, Cantinflas, Shirley MacLaine, Robert Newton, Charles Boyer, Joe E. Brown, Martine Carol, John Carradine, Charles Coburn, Ronald Colman, Melville Cooper, Noël Coward, Finlay Currie, Reginald Denny, Andy Devine, Marlene Dietrich, Luis Miguel Dominguín, Fernandel, John Gielgud, Hermione Gingold, José Greco, Cedric Hardwicke, Trevor Howard, Glynis Johns, Buster Keaton, Evelyn Keyes, Beatrice Lillie, Peter Lorre, Edmund Lowe, Victor McLaglen, Tim McCoy, Mike Mazurki, John Mills, Robert Morley, Alan Mowbray, Edward R. Murrow, Jack Oakie, George Raft, Gilbert Roland, Cesar Romero, Frank Sinatra, Red Skelton, A.E. Matthews, Ronald Squire, Basil Sydney, Harcourt Williams, Ronald Adam, Frank Royde, Robert Cabal
Duração: 181 min.

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