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Crítica | A Voz Humana

Quando o desespero chega ao fim.

por Luiz Santiago
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Escrita em 1928 por Jean Cocteau, a peça La Voix Humaine fez a sua estreia no Comédie-Française em 1930 e se tornou bastante popular em ambientes teatrais interessados em dar total espaço para uma atriz mostrar as suas habilidades em cena. Trata-se de um monodrama ambientado em Paris, onde uma jovem mulher está ao telefone com o homem que foi seu amante por cinco anos. Esse indivíduo vai se casar com outra mulher, o que deixa a protagonista completamente arrasada. O monólogo da peça mostra o paralisante, depressivo e profundamente atormentado estado mental e emocional da personagem no palco. Livremente baseado nessa peça, o diretor Pedro Almodóvar assinou a sua própria Voz Humana, um curta-metragem gravado durante a pandemia (entre 16 e 27 de julho de 2020, embora a ideia inicial do diretor fosse filmar em abril) e tendo na tela a grande Tilda Swinton interpretando “A Mulher”. Nessa versão, a separação entre a protagonista e seu parceiro não ganha uma motivação oficial, mas o espectador consegue depreender alguns motivos comportamentais e, ao menos em teoria, violentos que levaram a esse fim de relacionamento.

A abordagem de Tilda Swinton para essa personagem não é extrema e nem marcada por gritos ou grandiosos gestos dramáticos do início ao fim. Amparado por uma forma que dialoga com o teatro, o diretor coloca a atriz em movimentos bastante limitados nesse lugar que é assumidamente um cenário, criando uma oposição ainda mais interessante com os momentos que precisam ser mais intensos, como a cena do machado ou a catártica cena final. Mesmo nesses casos, a perturbação da mulher é estranhamente contida, pontuada por uma ou outra elevação de voz, um gesto mais amplo ou uma afirmação mais dura nas palavras que profere para o seu irritante parceiro ao telefone.

O sofrimento da protagonista de A Voz Humana é um sofrimento que ela precisa exprimir de forma “controlada e racional” para que a pessoa do outro lado da linha não desligue. Seu amor (não mais) correspondido é o motivo de sua grande mágoa, e as coisas que ela faz para tentar controlar ou mesmo superar esse sentimento não dão certo. A casa, o cachorro e a promessa de um retorno do amante para buscar as malas — o que acaba não acontecendo — são lembretes constantes de um momento feliz que se extinguiu. O interessante aqui é que o roteiro trata essa situação como parte comum de alguns relacionamentos, não como um evento inédito e cheio de lamentações imaturas que não combinariam nem com a personagem e nem com o que a direção pretende nessa livre adaptação.

As cores fortes de um cenário kitsch, típico das direções de arte nos longas de Almodóvar; a mudança de figurinos e a trilha sonora que acompanha o espírito sombrio da mulher indicam as muitas versões de uma atmosfera de vida que parece que veio para ficar — e que, de um modo muito interessante, se mostra apenas como uma ponte para o futuro dessa pessoa abandonada, que assume o término de uma relação, entende que essa vida passada já se foi e queima as provas físicas desse estágio de sua vida, entendendo que deverá superar o antigo amor ao lado de um improvável companheiro: o cachorro do ex.

O processo de sublimação, de desvio, de fuga dessa personagem se deu inicialmente através dos livros de Truman Capote, Alice Munro e F. Scott Fitzgerald, como também através de melodramas de Douglas Sirk e obras de safras mais recentes como Trama Fantasma e Assunto de Família; mas nenhuma dessas veredas artísticas serviu para aplacar o desejo e a raiva acumulados. Sua tentativa violenta de se expressar (e a violência real contra si mesma mais uma violência simbólica contra o homem que ama) também não surtiu efeito. Após insistir um pouco mais no motivo de sua desgraça, a mulher percebe que não há outra forma de se livrar daquela dor: ela precisa aprender a desligar na cara de quem está do outro lado da linha. É um despertar que vem purificado pelo fogo: a queima de uma casinha de brinquedos que abrigava uma existência sem sentido. E munida dessa percepção é que a mulher incendeia a sua prisão familiar e se joga na novidade que será a sua existência dali para frente.

A Voz Humana (The Human Voice) — Espanha, 2020
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar (baseado na peça de Jean Cocteau)
Elenco: Tilda Swinton, Agustín Almodóvar, Miguel Almodóvar, Pablo Almodóvar, Diego Pajuelo, Carlos García Cambero
Duração: 30 min.

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