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Crítica | A Voz Suprema do Blues

por Ritter Fan
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A adaptação de peças de teatro para o audiovisual mantendo-se a contenção dos espaços cênicos da mídia original é uma tarefa complexa com resultados nem sempre satisfatórios pela dificuldade que normalmente os cineastas têm em lidar com as duas linguagens e com os limites entre uma coisa e outra. Denzel Washington não conseguiu encontrar esse equilíbrio em Um Limite Entre Nós, primeiro de um pacote de 10 projetos de adaptação de peças do dramaturgo americano August Wilson que ele encabeça principalmente como produtor. A boa notícia é que a segunda adaptação, A Voz Suprema do Blues, capitaneada pelo razoavelmente inexperiente George C. Wolfe, acerta em cheio.

Girando em torno de uma sessão de gravações de Ma Rainey (Viola Davis), personagem verdadeira conhecida como a Mãe do Blues, e sua banda, a peça de Wilson, que foi adaptada para o cinema por Ruben Santiago-Hudson, usa uma onda de calor em Chicago para não só esquentar o ambiente, como também as tensões em diversas frentes, sempre com o objetivo de lidar com a opressão do afrodescendente em um mundo dominado por brancos. É particularmente notável a maneira como o longa, em seus minutos iniciais, consegue estabelecer visualmente a poderosa construção da cantora e compositora por parte de Davis em um papel simplesmente antológico. Ma Rainey é uma deusa entre seus pares e sua voz objeto de cobiça dos donos do dinheiro. Nesses mesmos minutos, impressiona como a literal disputa interna pelos holofotes entre Ma Rainey e o trompetista Levee Green, vivido magistralmente por Chadwick Boseman, marca a narrativa e serve de estopim para os conflitos que vão sendo ramificados quando vem o corte e a locação principal do longa – o estúdio de gravação de Mel Sturdyvant (Jonny Coyne) – é firmada.

Ma está atrasada e isso abre espaço para que o espectador conheça mais dos quatro membros de sua banda. Não só Green se revela ao mesmo tempo inocente, achando que sairá fácil da sombra da vocalista, como profundamente orgulhoso, como Cutler (Colman Domingo), o trombonista, é estabelecido como a voz de Ma no pequeno grupo, já, por tabela, deixando claro o que devemos esperar da estrela. Fechando o grupo, temos o pianista veterano Toledo (Glynn Turman) e Slow Drag (Michael Potts), o baixista. A dinâmica entre eles é de camaradagem, mas “quebrada” pela presença dinâmica de Green que, como seu nome diz, é “verde” ainda no que se refere a Ma e ao mundo geral, com sua constante tentativa de desvencilhar-se das garras e da opressão do homem branco sendo simbolizada por uma porta que ele sempre tenta abrir, mas não consegue, no subsolo onde eles ficam aguardando a sessão de gravação.

Quando Ma chega, logo estabelecendo-se no andar de cima, separada da banda, os problemas que passam a existir parecem nascer de seu preciosismo, das exigências que faz como, por exemplo, ter seu sobrinho Sylvester (Dusan Brown) falar o texto de abertura da música que dá título ao filme mesmo ele sendo gago. Disse “parecem”, pois, na verdade, Ma usa seu poder de barganha – sua voz – para sair de uma posição de subserviência, de exploração por parte tanto de seu gerente Irvin (Jeremy Shamos) quanto de Sturdyvant o tanto quanto possível. É como se, ao bater o pé para coisas banais como beber um refrigerante antes de começar a cantar, ela estivesse mostrando que ninguém mais vai acorrentá-la como não muito tempo antes toda sua raça era literalmente acorrentada nos EUA.

A direção de Wolfe nunca se perde. A costura de sequências externas com as tomadas em espaços confinados típicos do teatro tem boa alternância e a própria existência de dois ambientes bem definidos na gravadora ajuda na quebra daquela sensação de paralização e marasmo que muitos filmes em ambiente único podem causar. Além disso, o design de produção não só cuida com enorme esmero dos figurinos de época, como especialmente da maquiagem e penteado de Ma, transformando completamente Viola Davis na cantora histórica, mas com a atriz permanecendo visível por trás do cabelo selvagem, da maquiagem exagerada e borrada e, principalmente, do uso constante de uma camada brilhante em sua pele para deixar evidente o calor e o suor da cidade e da sessão de gravação, criando uma figura que reúne decadência, personalidade, raiva e genialidade em um incrível e hipnotizante conjunto disruptivo.

Como é comum acontecer em filmes com essa proposta, a estrutura de espaços específicos para cada personagem relevante é usada aqui, mas sem que isso seja realmente algo sensível ou que pareça ser o que é. E muito dessa fluidez acontece em razão do personagem de Colman Domingo, Cutler, que é como a força contemporizadora entre dois polos opostos: Ma e Green. Domingo tem uma presença em cena que não deixa absolutamente nada a dever a seus colegas, entregando uma atuação que faz toda a diferença no filme, pois ela abre espaço – quase como um mestre de cerimônias – para inesquecíveis momentos de Davis e Boseman separadamente.

Falando em Boseman, é triste lembrar que seu falecimento prematuro nos privou de um ator que estava apenas começando sua carreira e prometendo trabalhos como o que vemos aqui, sem dúvida alguma seu melhor. Apesar de ser visível sua aparência fragilizada em razão da doença que o levou e que destaca seu rosto, o trabalho do ator é de se tirar o chapéu. A maneira como ele trafega de virtuoso do trompete alegre e orgulhoso porque comprou um sapato amarelo por 11 dólares para uma vítima da opressão ao contar sua história pregressa é de cortar o coração. Há profundidade em seu olhos daquela que carrega verossimilhança para cada palavra que ele solta e, como a direção de Wolfe, para manter-se fiel ao espaço cênico teatral, escolheu não recorrer a flashbacks, isso torna-se particularmente importante, pois a história precisa ser viva o suficiente para o espectador colocar a imaginação para funcionar e, finalmente, enxergar pelo menos parte do sofrimento pelo que ele passou.

A Voz Suprema do Blues é um filme de atores e, como tal, foca nas performances de um elenco capitaneado por Viola Davis e Chadwick Boseman em duas atuações realmente inesquecíveis. Há enorme peso nos conflitos estabelecidos nos ambientes confinados que ecoam a opressão dos afro-americanos tanto naquela época quanto hoje em dia, transformando o longa em uma obra particularmente poderosa para o momento atual. A estrutura teatral dentro da obra cinematográfica encontra o ponto exato de fusão e resulta em uma mistura homogênea e destruidora, daquelas que prendem o espectador do primeiro minuto até quando os créditos começam a subir. Aplausos!

A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom – EUA, 18 de dezembro de 2020)
Direção: George C. Wolfe
Roteiro: Ruben Santiago-Hudson (baseado em peça de August Wilson)
Elenco: Viola Davis, Chadwick Boseman, Colman Domingo, Glynn Turman, Michael Potts, Jeremy Shamos, Jonny Coyne, Taylour Paige, Dusan Brown
Duração: 94 min.

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