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Crítica | Adrenalina Máxima

por Ritter Fan
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Sonatine, vitimado, no Brasil, por um título marketeiro que, infelizmente, é exatamente o oposto do que é o longa, é o longa que efetivamente revelou Takeshi Kitano ao mundo, ainda que a distribuição dessa obra no Ocidente tenha sido um périplo que quase permaneceu intransponível, por ela ser considerada, dentre outras bobagens, “japonesa demais”. E, ainda que sim, o longa esteja longe da estrutura mais reconhecidamente ocidental de se fazer filmes, especialmente nos EUA, o quarto trabalho de Kitano na cadeira de diretor e de roteirista (terceiro se considerarmos que, no primeiro, ele não levou crédito) poderia muito facilmente ser equiparado às obras da Nouvelle Vague francesa, mas com uma distinta e inescapável marca nipônico e, mais especificamente ainda, “kitanesa”, por assim dizer.

A violência, como em todas as suas obras até esse ponto, é um detalhe, é algo que serve à narrativa e não o contrário, já que o diretor/roteirista/produtor/ator japonês está muito mais preocupado em lidar com a contemplação da vida, do amadurecimento e do envelhecimento na cultura japonesa, usando como artifício de enquadramento a abordagem policial ou criminosa, normalmente conectada com a Yakusa, do que realmente lidar com narrativas tradicionais de gângsteres, algo que marcou a filmografia de seu país sobretudo nas décadas de 60 e 70. Sonatine, que significa Sonatina, ou uma pequena Sonata, é, na cabeça do diretor, o ponto em que o aprendiz de pianista precisa decidir que caminho seguirá, que estilo perseguirá em sua carreira e o longa é exatamente sobre as escolhas da vida, sobre todas as possibilidades que se abrem com dificuldade e se fecham em um piscar de olhos, sem que por vezes nem percebamos.

Na história Beat Takeshi, o nome artístico de Takeshi Kitano como ator e comediante no começo de sua carreira, vive Murakawa, um membro já mais velho de uma gangue da Yakuza em Tóquio que pensa em se aposentar, em deixar essa vida sem que o roteiro ofereça explicações sobre sua decisões, deixando o espectador simplesmente concluir de que se trata de uma mistura de idade, tédio, falta de motivação e assim por diante, exatamente o que pode muito facilmente acontecer com cada um de nós no dia-a-dia, o que imediatamente estabelece uma ponte entre o espectador e o personagem, humanizando-o no processo, mesmo que sua famosa manutenção de expressões faciais impassíveis transpareçam, no início, uma certa frieza e distanciamento. Pois bem, como gatilho narrativo, ele e sua equipe são enviados para Okinawa, sob a desculpa de ser necessário apaziguar o conflito entre os clãs Nakamatsu e Anan, ainda que fique desde logo claro que este é apenas um subterfúgio para o chefão livrar-se de Murakawa.

Durante a lenta descoberta de que a briga existente, na verdade, é apenas um birrinha sem importância, seu grupo é atacado violentamente em dois momentos brilhantemente disruptivos que assustam muito mais do que muitos filmes de horror supostamente amedrontadores, Murakawa e os sobreviventes se refugiam em uma casa de praia do irmão de um dos líderes do clã Nakamatsu. É nesse ponto que o supostamente lento (porque muitos acharão assim) “filme de máfia” tem uma radical mudança tonal, espelhando, sob certos aspectos, a que vemos em Boiling Point, só de que maneira muito mais delicada, ao mesmo tempo bonita e horrível. Sem ter o que fazer, ele e seus subalternos começam a literalmente brincar uns com os outros, fazendo jogos e trotes cada vez mais infantis, o que estabelece algo que eles nunca tiveram o luxo de ter: uma conexão verdadeira entre cada um ali, um momento para eles respirarem e viverem a vida de maneira despreocupada, até porque – e isso não é spoiler se o espectador tiver um mínimo de sensibilidade – o destino de todos já está pré-determinado e é inexorável.

Os momentos descontraídos, por assim dizer, ocupam grande parte do longa e têm a capacidade de virar de cabeça para baixo todo e qualquer conceito prévio que tenhamos sobre crime organizado e a máfia japonesa. Não é que a violência desapareça, pois cada uma das brincadeiras tem, de uma maneira menos ou mais explícita (uma delas é roleta russa, só para vocês terem uma ideia…), subtextos sombrios que não deixam a história simplesmente descambar para um lado lúdico puro. Isso fica aliás inclusive muito claro em uma sequência de estupro em que Murakawa tudo testemunha e nada faz, com a mulher, depois, juntando-se ao grupo como se nada tivesse acontecido, o que imediatamente cria um abismo de estranheza a qualquer espectador.

Kitano luta um pouco para acertar o tom da montagem em que ele mesmo trabalhou, por vezes quebrando inadvertidamente o ritmo narrativo ou encerrando sequências antes de seu tempo devido. Essa é inegavelmente uma marca desse seu início de carreira, algo que ele só viria a corrigir mais para a frente e, por isso, algumas vezes o filme parece perdido em propósito, o que de certa forma evoca as dúvidas de Murakawa e de seus subalternos, mas sem realmente parecer que foi algo que Kitano elegeu conscientemente. Por outro lado, a fotografia naturalista de Katsumi Yanagijima faz excelente uso não só da ambientação urbana de Tóquio e Okinawa, como também e, especialmente, da região praiana para onde o grupo se muda. A natureza passa a ser parte da narrativa, como que um subtexto sobre a natureza daqueles homens ali se divertindo com brincadeiras levemente – ou não tão levemente – macabras.

Takeshi Kitano faz convergir brilhantemente toda sua linguagem cinematográfica em Adrenalina Máxima com um resultado contemplativo e que subverte expectativas mesmo daqueles que porventura tenham tido a oportunidade de conferir seus longas anteriores. O cineasta faz desafios ao gênero e ao espectador e não se contenta em trilhar os caminhos mais viajados em seu grande momento de ruptura, que, como é razão para o título original, marca de vez a escolha de seu peculiar caminho pela Sétima Arte.

Adrenalina Máxima (Sonatine/Sonachine – Japão, 1993)
Direção: Takeshi Kitano
Roteiro: Takeshi Kitano
Elenco: Takeshi Kitano, Aya Kokumai, Tetsu Watanabe, Masanobu Katsumura, Susumu Terajima, Ren Ōsugi, Tonbo Zushi, Ken’ichi Yajima, Eiji Minakata
Duração: 94 min.

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