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Crítica | “Água do Céu – Pássaro” – Ney Matogrosso

Bicho indomável.

por Iago Iastrov
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Água do Céu – Pássaro é um disco que, logo ao ouvir, parece uma imersão nos sons da natureza; mas não apenas um mero pano de fundo: a natureza aqui é matéria, domínio e personagem. Ney Matogrosso não se limita a cantar: ele convoca a floresta, o bicho, o elemento bruto que desafia a civilização e tenta se reinventar a cada instante. Lançado em 1975, o álbum transborda essa sensação de poder e selvageria [des?] controlada (com direito a sons orgásticos na escandalizadora — à época — Açúcar Candy), como um artista que aprendeu a falar a língua dos elementos e, ao mesmo tempo, a comandá-los.

É uma guerra silenciosa entre o eu lírico de Ney e tudo que o cerca: os outros artistas, a sociedade, ou mesmo as ideias cristalizadas de seu tempo. É como se o disco fosse um ringue onde Ney dança ritualísticamente (Homem de Neanderthal), arrisca coisas (Idade de Ouro) e se reinventa a partir da destruição e reconstrução de imagens e sentidos (O Corsário e Pedra de Rio). Com uma banda formada por músicos de alto calibre, Ney teve liberdade para explorar arranjos densos, que nunca parecem prontos, o que dá uma sensação viva e pulsante de que ainda não está pronto — no bom sentido da afirmação. Os sons das florestas e os pássaros costuram as faixas de modo a criar uma continuidade quase cinematográfica. 

O contexto histórico também acrescenta uma camada importante para entender o álbum. Gravado durante a ditadura militar, o trabalho traz a imagem de um “bicho” feroz, selvagem, que enfrenta não apenas os limites musicais, mas também as figuras de autoridade. A interpretação musical de Ney é uma performance e uma declaração de resistência, fazendo deste disco uma espécie de manifesto silencioso, driblando a censura e mantendo sua voz viva. 

A profundidade das letras e a força das músicas, em parceria com compositores como Aldir Blanc, João Bosco, Sueli Costa, Milton Nascimento e Astor Piazzolla (As Ilhas e 1964), acrescenta múltiplas camadas ao disco, que ora é político (Bôdas), ora é poético (Mãe Preta – Barco Negro), ora apenas sensorial ou reflexivo sobre destinos e lugares (Cubanakan e América do Sul). A variedade de temas e tonalidades não confunde, porque tudo está ligado pela energia intensa e pelo desejo de transformação. O único ruído que vejo aqui é a faixa As Ilhas, que, para mim, soa um pouco fora da atmosfera do disco. No restante, é um álbum que funciona como uma jornada visceral pelo corpo e pelos elementos.

Água do Céu – Pássaro prova que a música, quando bem feita, pode ser um espaço de diálogo entre o homem e o mundo; um espaço onde a ferocidade e a delicadeza andam juntas, como um pássaro que voa sobre a água, sempre em movimento. O disco não entrega tudo mastigado, mas recompensa a quem quiser entrar na dança com ele, com suas nuances e ousadias, para uma viagem quase mística, inesquecível e atemporal.

Aumenta!: O Corsário
Diminui!: As Ilhas

Água do Céu – Pássaro
Artista: Ney Matogrosso
País: Brasil
Lançamento: 1975
Gravadora: Continental
Estilo: MPB, Rock Experimental, Música Latina, Rock Progressivo, Glam Rock
Duração: 56 min.

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