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Crítica | Aguirre, a Cólera dos Deuses

por Guilherme Almeida
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Eu sou o grande traidor. Não deve haver nenhum outro. Quem pensar em desertar será picado em 198 pedaços. Seus restos serão triturados até virarem tinta de parede. Quem comer um grão ou beber uma gota d’água além de sua cota será acorrentado por 155 anos. Se eu, Aguirre, quiser que os pássaros caiam mortos, eles cairão mortos das árvores. Eu sou a cólera dos deuses. A terra tremerá por onde quer que eu passe. Quem me seguir terá riquezas inimagináveis. Mas quem me desertar…

Depois de ler o roteiro de Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), Klaus Kinski ligou para Werner Herzog gritando desarticuladamente de tanto entusiasmo. Começava aí a prolífica parceria entre o ator e o diretor, que fariam juntos nada menos do que cinco grandes filmes: além do já citado Aguirre, realizaram também Nosferatu (1979), Woyzeck (1979), Fitzcarraldo (1982) e Cobra Verde (1987). Mas a relação entre ambos os artistas remonta de há muito tempo, quando eram jovens e moravam, por coincidência, no mesmo apartamento alugado, época em que um assustado Herzog acompanhava as crises nervosas de um Kinski já surtado.

Loucura” é a palavra que melhor resume essa dupla dinâmica. Embora o diretor mantivesse no trato com sua equipe uma postura educada e serena, a obsessão por sua arte passa de quaisquer limites de sanidade; por sua vez o ator, sempre com os nervos à flor da pele, era conhecido na Alemanha como alguém instável e violento, alguém de quem se podia esperar, a qualquer momento, uma explosão impetuosa. Nada mais apropriado, portanto, que o princípio da colaboração entre ambos, tingida de amor e ódio, seja uma obra como Aguirre, marcada que é pela desmedida, o descontrole e a necessidade orgulhosa de transposição de limites.

O longa pode ser definido como uma tragédia sem deuses. A construção trágica da personalidade de Don Lope de Aguirre faz com que não sobre nele nenhum comedimento. Seu desejo transgressor, verdadeiramente prometeico, é repetir os feitos do desbravador espanhol que “descobriu” o México, Hernán Cortés. Para isso, passa como um trator por sobre as ordens de Francisco Pizarro (o líder da conquista do Peru), mata seu rival Don Pedro de Ursua (Ruy Guerra) e rompe politicamente com o reino de Castela, tudo para angariar para si e seus sequazes a suposta terra de Eldorado, paraíso edênico imaginário, cheio de ouro e promessas de poder.

A trama esboça uma antiteodiceia ao deixar claro que os sonhos de Aguirre não encontram respaldo na dureza da realidade. Se os close-ups ressaltam o fundo sumamente personalista do enredo, os planos gerais e toda a construção da bela fotografia de Thomas Mauch constantemente lembram ao público a força inexpugnável da natureza, no que ela tem de sublime e grotesco. Natureza vista não como locus amoenus, mas como pedra no caminho de um protagonista descontrolado que, como um Fitzcarraldo avant la lettre, tenta tudo para superá-la. Não raro, a propósito, a mata densa ou as vagas do rio impedem o livre fluxo dos descobridores. Aliás, vale lembrar que o risco não esteve restrito ao mundo ficcional do filme, uma vez que o grupo de artistas e técnicos teve que se expor, de fato, a uma profusão de problemas, como a picada de uma cobra, o baixo orçamento, o isolamento da região e a intratabilidade das águas, sendo todas essas peripécias contadas no documentário Meu Melhor Inimigo (1998).

O que torna Aguirre tão singular é a escolha por uma estética realista, quase documental. A câmera acompanha par e passo a multidão de nobres e escravos que, vistos de longe na imensidão da montanha, mais perecem formigas. As lentes ficam embaçadas e molhadas, ressaltando assim o poder do meio, permeável até ao aparato responsável por garantir o ilusionismo diegético. Travellings circulares enfatizam a estagnação, de modo que os desejos do personagem principal tornam-se imediatamente imaginativos e quixotescos, denegados pelo ritmo moroso da direção.

Por outro lado, a crueza das filmagens não impede uma atuação empostada e teatral, como se o filme estivesse a admitir a dimensão shakespeariana de seus conflitos. Klaus Kinski anda manco, olha raivoso para o espectador, faz pose e pratica aquilo que Herzog viria a chamar de a “espiral de Kinski”, movimento que consiste em parar ao lado do tripé e girar a perna num arco que se volta organicamente para a câmera, aparecendo de surpresa no quadro. Os monólogos expostos e interiores também remetem ao mundo do teatro, e funcionam para conformar a hybris tão bem encarnada pelo ator.

Enquanto atualmente tudo é “resolvido” pelo CGI, as soluções encontradas por Werner Herzog frente as dificuldades práticas merecem aplausos. É surpreendente que um filme descontrolado como esse, sobre o qual conta-se que Kinski quase matou duas pessoas (uma com uma espadada, outra com um tiro de espingarda), tenha tido um resultado extremamente positivo. Talvez seja porque Aguirre, o diretor e o ator sofram todos da mesma benigna doença, o desejo de grandeza. Se o nobre espanhol falhou, podemos ter certeza, após assistir a essa obra maravilhosa, do sucesso dos alemães malucos.

Aguirre, a cólera dos deuses (Aguirre, der Zorn Gottes)- Alemanha, Peru, 1972
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Klaus Kinski, Ruy Guerra, Helena Rojo, Peter Berling, Del Negro, Cecilia Rivera, Daniel Ades, Edward Roland, Alexandra Cheves, Armando Polanah
Duração: 95 min.

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