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Crítica | All the Beauty and the Bloodshed

A arte como arma.

por Ritter Fan
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Não conhecia a arte da fotógrafa Nan Goldin. Na verdade, sequer havia ouvido falar dela antes de conferir o documentário produzido, dirigido e editado por Laura Poitras. All the Beauty and the Bloodshed não me fez gostar da arte de Goldin, mas esse não é nem de longe o objetivo do filme, mas sim me apresentou a alguém que passei a admirar profundamente, alguém que fez de sua vida, de seu dom e de sua profissão eternas armas apontadas contra toda a sorte de injustiças de forma que não é sequer possível dissociar cada uma de suas facetas.

O trabalho de Poitras no comando de seu documentário só tem uma falha: ele é um pouco hermético demais, especialmente em seu início e exige um pouco de paciência do espectador mais afoito para que todas as peças sejam bem encaixadas. Mas, sinceramente, essa é uma falha que resulta apenas de preguiça e, talvez, desinteresse pela temática, pois a diretora costura uma obra que, como a vida de Goldin, combina à perfeição arte e ativismo. É, definitivamente, um filme que exige mais de todos, especialmente daqueles que, como eu, não tinham conhecimento sobre a artista, mas os dividendos pagos pela abordagem inteligente de Poitras resulta em um documentário desafiador e belíssimo. 

Na superfície e também em todas as sinopses, o documentário aborda a luta de Goldin contra a família Sackler, dona da Purdue Pharma, em razão de seu envolvimento na criação da epidemia de opioides que assolou e ainda assola principalmente os EUA e que tem sido alvo de filmes, séries e documentários nos últimos anos, incluindo Dopesick. É com uma demonstração de inconformismo no Metropolitan Museum de Nova York, na ala do templo egípcio de Dendera que foi batizada com o nome da família, que o longa começa, com Poitras, então, puxando sua linha narrativa a partir daí para trabalhar não só o mais recente exemplo da força de Goldin, como para descortinar a vida da artista, incluindo sua dolorosa relação com os pais e a mais dolorosa ainda perda de sua irmã, que funcionou como uma espécie de marco inicial de sua vida. 

Dividindo o filme em capítulos a partir de The Ballad of Sexual Dependency, talvez a criação artística mais importante de Goldin, e usando muitas das fotografias, além de narração da própria Goldin, a diretora tece uma narrativa audiovisual não-linear que estuda as motivações da artista, suas lutas, sua forma de enxergar o mundo e, no processo, aborda as mais variadas questões modernas, incluindo a AIDS e distúrbios mentais. O retrato pintado pelos fotogramas cuidadosos de Poitras é o de uma vida dura, cheia de dores e de altos e baixos, mas que tem na arte não só seu propósito, como a própria razão de ser e, mais ainda, instrumento de manifestação física de uma agonia coletiva de diversas décadas. 

Em outra camada – agora já se aproximando do enfoque inicial do longa – o documentário contrasta a arte pura, aquela que emana do artista e a arte como instrumento de comércio e prestígio. Isso se dá pelas criações de Goldin, que vêm dela porque precisam vir, representando o artista em seu estado essencial em oposição à arte e a cultura patrocinadas por nomes supostamente importantes como o da família Sackler de forma que alas ou até museus inteiros possam ser batizados com eles. Como Goldin racionaliza, se o sistema não permite que os Sacklers sejam penalizados da forma como eles deveriam ser, então que pelo menos seu nome seja apagado do mundo artístico e cultural, deixando de maculá-lo com tudo o que ele carrega de negativo. É, de certa forma, a arte lutando por sua própria independência, por seu próprio direito de existir sem interferências externas e sem que ela seja mais lembrada pelo nome do patrocinador do que pelo nome do patrocinado. 

Mas, apesar das diversas causas nobres de largo alcance que o documentário aborda, em momento algum Poitras deixa de ser o mais pessoal possível no que se refere a Goldin. O macro nunca perde o micro de vista e é isso que, para mim, traz real valor para o longa, pois é nessa indissociabilidade entre vida e arte e entre arte e ativismo social que a diretora consegue trabalhar um conjunto narrativo coeso e sólido tendo a fotógrafa como catalisadora. É um testamento sobre a arte e sobre como ela, em suas mais relevantes manifestações, é um veículo de exposição, de desnudamento da alma humana em toda a sua complexidade e beleza, mas também em sua simplicidade e feiura.  

All the Beauty and the Bloodshed não é e não quer ser uma obra de fácil digestão e Poitras consegue, mesmo dando-se ao luxo de enveredar por uma abordagem inicialmente hermética, contar uma rica história de vida que se confunde com alguns dos mais relevantes aspectos socioeconômicos e políticos das últimas várias décadas e que tem na arte sua manifestação máxima. Se Goldin fez de sua vida a inspiração de sua arte e de sua forma de encarar o mundo, Poitras faz de seu documentário mais um elemento que se confunde e informa a própria vida e causas que aborda.

All the Beauty and the Bloodshed (EUA, 2022)
Direção: Laura Poitras
Com: Nan Goldin
Duração: 122 min.

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