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Crítica | Alma Corsária

Em olhar sobre a passagem da vida, Reichenbach encontra a poesia em seu modo libertador.

por César Barzine
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Uma das abordagens em torno de Alma Corsária é o uso de seu fluxo de memórias com toda uma carga autobiográfica e apaixonada, o que pode nos levar a sugestão de ser um drama “sério” num formato sofisticado e com ecos de cinema europeu, mas o longa em questão, apesar de sua história partir do lançamento de um livro de poesia, acaba sendo formidavelmente um trabalho sujo, feio e tosco. Em meio a isso, a sacada de genialidade de Reichenbach é justamente unir esses dois aspectos opostos e criar uma obra que encontra na sujeira a sua poesia, o seu olhar íntimo e completamente encantado pela vida.

Reichenbach busca fazer um filme poético seguindo inversamente a tendência de obras desse tipo, Alma Corsária é, então, um verdadeiro manifesto em oposição a um ideal de pureza e elegância que seja necessário para se atingir a poesia. Aqui, o germe do fazer poético não está na ação solitária de um homem numa mesa de café; pelo contrário, ele se encontra, seja no sentido figurado ou literal, no balcão de um bar e com direito a todos os atributos que a convivência num ambiente desses pode proporcionar. E digo “literalmente” pois o lançamento do livro da dupla de protagonistas ocorre justamente em um boteco, uma verdadeira espelunca que sintetiza perfeitamente o sentido da vida daqueles dois escritores.

Antes de ser um filme sobre o passado, Alma Corsária é uma obra sobre a memória. A diferença entre uma coisa e outra (aparentemente iguais) é que o passado pode ser uma visão objetiva dos fatos dentro do cinema, já a memória está sempre presa ao subjetivismo daquele que viveu este passado. Isto significa que, no caso da memória, além de haver uma abordagem pessoal que muda o tom dos fatos, também pode haver o acréscimo, a substituição ou a distorção na exposição desses mesmos acontecimentos. Daí o fato de ocorrer tantos momentos inverossímeis no filme, pois a memória, presa diante do subjetivo, se expande e se liberta no ato de desenrolar algum fragmento do que já se passou.

A liberdade, que assume o mecanismo da memória na ação fílmica, não é apenas ocupada na forma em que cada lembrança é apresentada, mas também no modo em que cada momento é conectado. Neste caso, o trabalho de montagem de Cristina Amaral pode ser considerado, sem dúvidas, um dos melhores de todo o cinema nacional. Isso se deve graças ao fator sintomático de que tudo em Alma Corsária é arbitrário (diálogos, cenas, linearidade, personagens), fazendo com que os flashbacks sejam uma colagem desordenada de fragmentos sem muito rigor na conexão entre si. O que não significa uma falta de harmonia, mas um mergulho bastante imersivo na memória de Rivaldo e Teodoro. 

Apesar disso, o primeiro resíduo de lembranças apresentado é justamente o mais antigo de todos, se encaixando na cronologia do filme como pontapé entre os flashbacks ao retratar os episódios iniciais entre eles. Do boteco para o convívio de adolescentes num ambiente de classe média, o filme regride no tempo para alcançar uma atmosfera singela e juvenil. O uso do preto e branco, apesar de poder parecer uma escolha fácil, é certeiro na construção de um tom barroco, transportando os personagens para o idílio da adolescência deles. É visível para o espectador as expressões de carinho que um tem pelo outro, isso desde o início (quando Rivaldo defende Teodoro na frente de outros jovens) até o momento em que os dois se despedem.

Mesmo havendo diferenças gritantes entre os meninos do passado e o que eles se tornaram no futuro – principalmente quanto à imaturidade que irá desvelar neles -, há um traço na caracterização de Teodoro que perdura no restante do filme. O fato dele ser de classe média o deixa com um certo peso na consciência, especialmente quando o assunto é política, sendo esta questão um entrave para a sua autoestima. Pois o que possui valor para ele não é o engajamento político em si, mas a estética que esse modo de ser reproduz. A realidade é que Teodoro se importa somente em parecer revolucionário, daí o seu fetiche por vanguardas artísticas e jargões marxistas que ele vomita constantemente. A sua vontade de parecer uma cria do proletariado ou um eterno integrante de Maio de 68 forma um divertido jogo de aparências que o roteiro constantemente exibe com muito nonsense e sarcasmo – em dado momento, a produção até lembra A Chinesa, de Godard, devido ao seu caos cênicos provocado.

Teodoro vira uma caricatura de si próprio, e o filme em geral parece fazer o mesmo. O tal discurso político que ambos demonstram é exaltado e esculhambado (até lembra a pornochanchada em alguns instantes), como se Carlos Reichenbach quisesse rir de tudo a sua volta: de seu passado romântico, do idealismo performático daquela juventude, do filme com o seu espírito libertário e do próprio espectador, perdido naquela balbúrdia em que atura (e se diverte com) tais divagações. Teodoro, interpretado por Jandir Ferrari, está completamente teatral por encarnar um personagem dentro de outro personagem. Ele nada mais faz do que decorar monólogos de guerrilha e importunar seu amigo Rivaldo – este que provoca Teodoro ao dizer que ele, ao contrário do companheiro, é um autêntico hippie e vanguardista.

As atuações nos primeiros flashbacks de Alma Corsária (durante a adolescência dos protagonistas) são completamente risíveis. Possuem um teor bastante amador, como se estivessem claro que estão atuando. Os atores parecem, ao mesmo tempo, desleixados e desconfortáveis naqueles papéis, porém essas características não rebaixam o filme, pois fazem parte da criação de um cinema brutal e grosseiro, que caminha pelas margens da poesia num processo autoconsciente em que Reichenbach deixa claro através da quebra da transparência sua tentativa de fazer uma produção enfática, que grita a cada minuto em prol de uma homenagem à vida e ao cinema.

Em um exaltado prólogo, Reichenbach transparece a sua intenção com a obra: prover uma arte pessoal baseada no espírito caloroso de suas experiências e ideias de juventude. Seu plano até chega a ser parecido com o de Fellini em , onde o conceito de um projeto está enraizado na essência do filme em si. Mais especificamente, os dois longas acabam sendo dois manifestos não como discursos políticos ou puramente filosóficos, mas como expressões individuais que se colocam em total diálogo com a figura íntima de seus respectivos autores e o cinema por completo. Reichenbach e Fellini criaram, desta forma, obras dotadas de imensa devoção, declarações que são como diários ou cartas de amor, expondo fragmentos da vida em um caminho sem rumo, onde até mesmo os próprios autores não sabem aonde querem chegar. Nestes dois trabalhos há a demonstração de que, para a realização de declarações realmente sinceras, é necessário se ver livre de qualquer racionalização do pensamento, pois expressar um sentimento já demanda por si só a criação de uma nova linguagem. 

Alma Corsária – Brasil, 1993
Direção: Carlos Reichenbach
Roteiro: Carlos Reichenbach
Elenco: Bertrand Duarte, Jandir Ferrari, Andrea Richa, Flor, Mariana de Moraes, Jorge Fernando, Emílio Di Biasi, Abrahão Farc, Roberto Miranda, Paulo Marrafão, Jackeline Olivier
Duração: 116 minutos.

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