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Crítica | Almas Reencarnadas

por Leonardo Campos
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A vingança e o ressentimento funcionam como válvulas que engendram os mecanismos de ação dos espíritos vingativos da cultura oriental, pelo menos de acordo com o que as narrativas cinematográficas nos apresentam. Takashi Shimizu, o homem por detrás da maldição de Kayako e Toshio, em O Grito, ganhou as salas de cinema brasileiras em 2006, período do lançamento de Almas Reencarnadas, produzido no ano anterior, no Japão. Interessante observar que neste filme, a metalinguagem se estabelece como a base para a condução da história, algo semelhante ao desenvolvimento de Ju-On 2, com a mídia, desta vez a seara de produção cultural, o cinema, dedica-se ao processo de reencenação de uma tragédia do passado, violentamente trágica e potencialmente dramática para se transformar numa narrativa ficcional.

Sob a direção de Shimizu, guiado pelo roteiro que escreveu em parceria com Masaki Adachi, Almas Reencarnadas acompanha a trajetória de um grupo de realizadores dispostos a reproduzir uma tragédia ocorrida nos anos 1970, num hotel distante, situado numa região menos urbana do Japão. Foi a ocasião do professor Norihasa Amori (Atsuhi Haruta) visitar o local com a sua família e colocar em ação um tenebroso plano de assassinar as pessoas, inclusive os seus acompanhantes, tendo como tarefa filmar a realização numa câmera 8mm e depois se suicidar, numa busca por respostas para as suas dúvidas acerca da reencarnação. Após alguns anos, o interesse das pessoas pelo acontecimento move a “lenda” que se provará não ser bem uma lenda ao passo que os integrantes da equipe de produção começam a vivenciar situações pouco convencionais, isto é, um elo, mesmo que breve, com o sobrenatural.

O idealizador deste projeto de releitura dos acontecimentos é Ikuo Matsumara (Kippei Shiina), homem interessado na história 35 anos depois de tudo que ocorreu. Acompanhamos, como espectadores, o processo de produção nos bastidores, inicialmente cheio de energia, sempre envolto em mistério, principalmente com a aproximação da data das filmagens no próprio local, ambiente que tal como na mitologia do universo da franquia O Grito, traz as energias malditas dos acontecimentos em suas paredes. A pessoa mais atormentada nisso tudo é Nagisa Sugiura (Yuka), jovem atriz que começa a ser atormentada por pesadelos que envolvem os assassinatos e espíritos que parecem interessados em lhe enviar uma mensagem. O que será que há por detrás dessa tentativa de comunicação? Os espíritos serão piedosos com os envolvidos?

Estas são perguntas que vão surgindo ao passo que a história avança. A atriz principal do elenco, em seu tormento, começa a se questionar se pode ser a própria reencarnação das pessoas mortas de maneira tão brutal naquele local. Em sua investigação, ela desconfia ser o retorno de Chisato (Mao Sasaki), a filha do assassino responsável pelos crimes no hotel. E se os atores e membros da equipe técnica fossem todos, reencarnações das vítimas do terrível acontecimento? É o que a narrativa parece nos apresentar. Como de costume nas produções japonesas, há um feixe de blocos com personagens distintos do ponto central, todos a gravitar entre os principais acontecimentos, em ligações bem passageiras com os mais presentes na história, filmados pela equipe de um cineasta que assumiu, quando entrevistado na ocasião de lançamento do filme, ter tido maior liberdade de criação que em O Grito 2, produção realizada logo depois de Almas Reencarnadas, afinal, não é novidade alguma que nos esquemas estadunidenses a voz do produtor e de quem injeta a grana é mais alta e com tom definitivo.

Durante sua realização em solo japonês, Shimizu introduziu tons de pesadelo mesclados com alucinações, além de imprimir um tom documental para a produção sobre almas que parecem ainda atormentadas diante do que ocasionou suas partidas para outra dimensão. Os bastidores de produção lembram um making of, fundido com a ficção macabra que nos é apresentada, repleta de breves furos de roteiro, mas nada que atrapalhe a condução da história de uma maneira mais geral. Na direção de fotografia, Takahide Shiba Nushi é guiado a trabalhar bem a movimentação da câmera pelos espaços, principalmente no constante uso de plano-sequência pelos corredores do hotel, algo parecido com as estratégias narrativas adotadas por Stanley Kubrick em O Iluminado.

Aliás, o design de produção de Iwao Saitô também possui conexão com o cineasta ocidental, em especial, com a produção do Quarto 227, ambiente semelhante ao que encontramos no hotel do filme referenciado. Os efeitos sonoros de Kenji Shibasaki são envolventes, nas não arrepiantes como a incursão de horror em O Grito, por exemplo, mais eficiente se analisado comparativamente. A trilha sonora de Kenji Kawai faz um bom trabalho, mantendo-se relativamente discreta entre uma passagem e outra, sem aderir ao histrionismo sonoro para assustar o público. Ainda na seara técnica, os efeitos visuais de Tomoya Ohata também são adequados, mesmo que visivelmente mais rústicos que o costumeiro em nosso sistema de produção cinematográfica.

Ah, importante notar a relação com A Tortura do Medo, de Michael Powell, referencial imediato quando estamos diante da primeira aparição do pai que assassina todos as pessoas que encontram pelo seu caminho no hotel. Mesmo com a resolução do mistério, temos o final nada favorável para alguns personagens que tiveram contato com as entidades sobrenaturais do filme, ansiosas em estabelecer comunicação para a dor e ressentimento que as mantiveram conectadas com o desejo de retribuição ao longo dos anos. Ademais, podemos interpretar Almas Reencarnadas como mais uma produção de Takashi Shimizu que se voltou para as reflexões acerca da disfunção psicológica familiar, neste caso, de um pai, responsável pelo esfacelamento de sua família, alegoria para tantas outras, não apenas japonesas, mas no mundo inteiro, de maneira geral. A brutalidade dos acontecimentos nos mostra como a violência se banalizou nas sociedades contemporâneas, um mal global que a cada dia faz novas vítimas e traumatiza outras tantas.

Almas Reencarnadas (Rinne) — Japão, 2005
Direção: Takashi Shimizu
Roteiro: Takashi Shimizu, Masaki Adachi
Elenco: Yûka, Karina, Kippei Shîna, Tetta Sugimoto, Shun Oguri, Marika Matsumoto, Mantarô Koichi, Atsushi Haruta, Takako Fuji
Duração: 114 min.

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