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Crítica | Altered Carbon – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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Nem bem Carbono Alterado, o primeiro romance do autor britânico Richard Morgan (conhecido nos EUA com um “K” entre nome e sobrenome), foi lançado em 2002 e a roteirista e produtora Laeta Kalogridis adquiriu os direitos de uma adaptação audiovisual. Ela certamente viu, no nascedouro, o potencial das aventuras de Takeshi Kovacs em um futuro distópico em que a morte é um mero inconveniente contornável com a transferência da consciência da pessoa, guardada em um HD na base da nuca, para outros corpos – ou “capas” -, sejam eles clones, corpos “usados” ou até mesmo receptáculos artificiais.

No entanto, ela precisou de nada menos do que 15 anos para finalmente levar o romance à sua primeira adaptação, em uma aquisição arriscada do Netflix considerando o teor violento e altamente sexualizado da obra literária em um cenário tipicamente cyberpunk noir que é uma bela fusão entre os trabalhos de Philip K. Dick e os de Dashiell Hammett ou Raymond Chandler.  Claro que Laeta e as produtoras envolvidas poderiam ter alterado radicalmente o conteúdo do texto de Morgan, mas não é isso que acabou sendo feito, o que é ao mesmo tempo bom e ruim.

Bom, pois Altered Carbon não é uma ficção científica comportada, daquelas que podem ser vistas por toda a família sem constrangimentos. Já temos muitas obra nessa linha assim e uma pegada mais brusca e crua é definitivamente bem vinda. Por outro lado – o ruim – essas características poderiam muito facilmente servir de muletas narrativas para a série, com exageros que passariam por cima dos aspectos narrativos, algo que por muitas vezes a série não consegue escapar.

Já adianto que o resultado final me pareceu equilibrado se entendermos a proposta de uma série que transita – assim como a obra original – entre arguições filosóficas relevantes, homenagens entusiasmadas aos gêneros literários que são sua fonte primária, pancadaria descerebrada e sexo e erotismo ao ponto limite da breguice. Há muito o que se apreciar no esforço colocado nas telinhas pela empresa de streaming, mas também muito o que reclamar, ainda que o conjunto seja harmônico e muito interessante, um tour de force que inicia um potencial franquia sci-fi sem muitos freios morais (há um episódio inteiro dedicado ao tema tortura, só para o espectador ter uma ideia).

Na história, Kovacs (vivido primordialmente por Joel Kinnaman) é acordado 250 anos depois de ser preso por soldados do Protetorado e é encapado em uma capa que não é o corpo original dele para resolver um crime. O multimilionário (para usar um eufemismo) Laurens Bancroft (James Purefoy) mexe os pauzinhos para retirá-lo da geladeira de forma que ele possa elucidar sua própria morte que a polícia, representada pela tenente Kristin Ortega (Martha Higareda), considera que foi suicídio e se recusa a investigar mais profundamente. Sem saída e com uma oferta realmente irrecusável, Kovacs parte para fazer as vezes de detetive particular em um mundo ao qual não está muito familiarizado (apesar de sua adaptação ser rápida demais e 250 anos não parecerem que trouxeram evoluções tecnológicas significativas desde que o protagonista fora encarcerado) e em uma trama que, logicamente, fica cada vez mais complexa, com um redemoinho de novas informações surpreendentes praticamente a cada episódio e com novos personagens gradativamente se juntando ou se opondo a ele de uma forma ou de outra, com destaque para a sensacional inteligência artificial Poe (Chris Conner), que adotara a aparência de ninguém menos do que Edgar Allan Poe e administra (na verdade é) o hotel O Corvo (claro, o poema mais famoso do autor).

A narrativa rocambolesca só é complicada na superfície, mas ela é suficientemente bem construída para prender a atenção ao longo dos 10 episódios da primeira temporada que, fico feliz em afirmar, é em grande parte auto-contida, contando uma história com começo, meio e fim. O que realmente importa – até certo ponto, pelo menos – é o subtexto que faz as perguntas realmente interessantes, a primeira delas sendo óbvia: em que a humanidade se tornaria se a morte fosse retirada da equação? As implicações são muitas e a tentativa de resposta a essa pergunta pode levar a um universo de discussões enriquecedoras. Se eu posso fazer o que quiser sem o risco de morrer (de verdade), será que eu assumiria mais riscos ou a própria vida tornar-se-ia tão banal ao ponto de não ter mais importância?

Em cima disso, a série indaga como isso afetaria a questão sócio-econômica lidando com a enorme diferença que existe entre a volta à vida para quem não tem meios e o mesmo para quem tem muitos meios. Em outras palavras, os roteiros tentam replicar nossa sociedade atual nesse futuro estranho – mas familiar – no século XXIV sem esquecer das camadas religiosas e morais que  a imortalidade pode trazer.

Mas não, Altered Carbon não é uma série que para com o objetivo de fazer essas perguntas ou mesmo mergulha muito profundamente nelas. A série preza por um ritmo forte e uma escolha narrativa clara: trata-se de uma série de ação e ação é o que vemos a cada episódio, normalmente envolvendo armas de toda natureza, desde gigantescas metralhadoras dilacerantes que saem do teto, passando por armas de raio e chegando até mesmo a katanas e pequenas, mas destrutivas facas. E as câmeras não se furtam de mostrar detalhes da carnificina, nem de usar e abusar de câmeras lentas e coreografias impossíveis para dar conta do recado. Kovacs é como o Exterminador do Futuro com anabolizantes misturado com Neo e todo o arsenal da matrix e mais um pouco em um cenário em que, como disse, a morte real é apenas um inconveniente.

Visualmente, a série não tem vergonha alguma de praticamente pegar emprestado tudo aquilo que Ridley Scott construiu e notabilizou com seu seminal Blade Runner. O visual sujo, mas colorido está todo lá, com direito a becos mal iluminados, luzes de neon piscando, carros voadores, prédios altíssimos, cigarros e uísque (esses vícios, pelo visto, acompanharão para sempre a humanidade), e, claro, em termos de figurino, a transformação de Kovacs em uma versão, digamos, bem menos sutil e muito mais mortal do Rick Deckard original, além da presença de femmes fatales curvilíneas. E esse “empréstimo” todo faz pleno sentido considerando que também a obra original de Morgan evoca a mesma coisa, só que sugando da fonte inesgotável do autor cuja obra inspirou Blade Runner.

Mas há um evidente exagero nesses visuais todos ao ponto de cansar um pouco, além de um CGI que, quando toma a tela inteira, distrai o espectador quando deveria ajudar na imersão. O que em Blade Runner ou Matrix era sutil, em Altered Carbon é escancarado, inclusive com vários minutos de texto expositivo ou explicações pseudo-científicas de revirar os olhos. O que era sombrio nos clássicos, foi repaginado para o famoso “escuro” da chamada modernidade, daquele tipo que está lá só para confundir o espectador. O que havia de clima e construção narrativa abre espaço para obviedades e uma violência e uma sexualização (especialmente feminina) tão extrema que elas acabam se tornando progressivamente menos impressionantes a cada episódio. É a fadiga do exagero, do mais como sinônimo de melhor, dos fogos de artifício ocupando lugar de diálogos marcantes e elenco azeitado. De toda maneira, mesmo com seus problemas, Altered Carbon nunca tenta enganar o espectador e entrega aquilo que promete desde seu primeiro episódio: um espetáculo tipicamente hollywoodiano, só que acima da média.

Quando falei brevemente do elenco, de forma alguma quis dizer que ele está ruim. Nada disso. Kinnaman, que se mostrou um excelente ator na espetacular The Killing, aqui cumpre sua função de ser a versão mais magra e sem óculos escuros do T-800. Martha Higareda como a policial Ortega também funciona bem como a mulher sofredora e durona vinda de uma muito bem utilizada família católica que ilustra o conflito entre acreditar em Deus e notar que o Homem tornou-se Deus nesse cenário futurista. O mesmo vale para Ato Essandoh, que vive Vernon Elliott, um torturado pai que acaba se tornando um hesitante parceiro de Kovacs. No entanto, os únicos reais destaques são James Purefoy e Chris Conner, o primeiro em sua divertida canastrice extrema de vilão de filme de James Bond e o segundo por ser um legítimo, mas trágico alívio cômico que incorpora muito bem o personagem digital com base no real que vive, quase como um HAL 9000 palhaço.

Altered Carbon, mesmo com seus problemas, é diversão garantida para quem comprar a premissa de “pancadaria primeiro, filosofia depois” que a série imprime desde o começo. Sua mitologia é bem explorada e bem costurada no caso detetivesco e a resolução é suficientemente lógica e bem amarrada para agradar em cheio quem não quiser nada transcendental. Há, sem dúvida, o potencial para mais do mesmo em uma segunda temporada, isso se o espectador não ficar exausto depois de tanto sangue, sexo e cyberpancadas.

Altered Carbon – 1ª Temporada (EUA, 02 de fevereiro de 2018)
Desenvolvimento:  Laeta Kalogridis (baseado em romance de Richard Morgan)
Direção: Miguel Sapochnik, Nick Hurran, Alex Graves, Uta Briesewitz, Andy Goddard, Peter Hoar
Roteiro: Laeta Kalogridis, Steve Blackman, Brian Nelson, Russel Friend, Garrett Lerner, Nevin Densham, Casey Fisher
Elenco: Joel Kinnaman, James Purefoy, Martha Higareda, Chris Conner, Dichen Lachman, Ato Essandoh, Kristin Lehman, Trieu Tran, Renée Elise Goldsberry, Leonardo Nam, Hayley Law, Will Yun Lee, Marlene Forte, Byron Mann, Tamara Taylor, Adam Busch, Olga Fonda, Waleed Zuaiter, Hiro Kanagawa, Matt Frewer, Tahmoh Penikett, Michael Eklund
Duração: 46 a 66 minutos por episódio (10 episódios no total)

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