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Crítica | Alucinações do Passado (1990)

Adrian Lyne brilhando fora de sua zona de conforto.

por Ritter Fan
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Mesmo contendo algumas características clássicas do diretor, é inegável que Alucinações do Passado é o menos Adrian Lyne de todos os filmes de Adrian Lyne, que, depois de seu sucesso absoluto com Atração Fatal, que lhe valeu merecidas seis indicações ao Oscar, inclusive as de Melhor Filme e Melhor Diretor, saiu completamente de sua zona de conforto e mergulhou em um perturbador thriller psicológico com toques de horror – ou vice-versa, se preferirem – estrelado por Tim Robbins, no começo de sua estirada de sucessos noventistas. O resultado foi um fracasso financeiro que, porém, influenciou obras futuras em mídias diferentes, notadamente a franquia de games e filmes Silent Hill, e, ao longo dos anos, angariou fieis seguidores, permanecendo acesa no imaginário popular a ponto de até ganhar um remake em 2019.

O roteiro metafísico com forte simbologia religiosa – de seu título, retirado do Livro de Genesis, que significa a escada usada pelos anjos para subir e descer do Paraíso, aos nomes dos personagens – foi escrito em 1980 por Bruce Joel Rubin, que passou anos tentando materializá-lo como um filme, passando por diversos estúdios e diretores no processo. Foi somente quando A Maldição de Samantha, que ele co-escreveu com Diana Henstell, foi lançado, que a Paramount comprou seu roteiro juntamente com o de Ghost – Do Outro Lado da Vida, porém desistindo de Alucinações do Passado no processo e vendendo-o para a então ainda forte Carolco que fez de Rubin um co-produtor e entregou a Lyne rédeas mais soltas e um orçamento considerável de 25 milhões de dólares. Ironicamente, os dois filmes tematicamente semelhantes – Ghost e Alucinações do Passado – acabaram sendo lançados no mesmo ano, com o primeiro, como a história mostrou, tornando-se um enorme sucesso que acabou, de certa forma, abafando as chances de o segundo prosperar.

Rubin sem dúvida alguma teve uma excelente ideia nos anos 80, mas fica evidente que seu texto é, talvez, carregado demais de uma abordagem religiosa que acaba se tornando didática e óbvia demais na medida em que a trama progride. É talvez nesse aspecto que a direção de Lyne mais se destaca, pois o britânico consegue driblar quase que completamente as armadilhas do roteiro de Rubin ao intensificar a forma como ele cria atmosferas envolventes, uma de suas grandes especialidades. Valendo-se de uma soberba fotografia neo-noir de viés onírico por Jeffrey L. Kimball em seu melhor trabalho até esse momento de sua carreira (quiçá o melhor de toda sua carreira), uma direção de arte suja, pesada e assustadora de Jeremy Conway (que lembra muito seu trabalho em Coração Satânico) e uma montagem exemplar de Tom Rolf, que trabalhara em Chuva Negra, de Ridley Scott, no ano anterior, Lyne cria um labirinto psicológico kafkiano capaz de ensejar ataques de ansiedade no espectador, com Robbins entregando um trabalho dramático desesperador por ser fácil o espectador criar empatia por ele e, nesse mesmo diapasão, desnortear-se junto com ele.

Não abordei a trama propositalmente até agora, pois creio que esse seja um daqueles filmes que mereça ser apreciado sem que saiba nada sobre ele. Mas, apenas para não deixar esse vácuo na crítica, a obra acompanha Jacob Singer, um carteiro em Nova York que vive com sua namorada Jezebel “Jezzie” Pipkin (a saudosa Elizabeth Peña em uma atuação sensualíssima, mas, seguindo a marca registrada de Lyne, sem um pingo de vulgaridade) e que tem visões cada vez mais estranhas que incluem seu passado como soldado no Vietnã e sofre pela perda de seu filho Gabriel (Macaulay Culkin, com presença maior do que uma mera ponta, mas sequer tendo sido creditado e isso no mesmo ano em que estouraria em Esqueceram de Mim), além de passar por sessões de quiropaxia com o dedicado e sábio Louis “Louie” Denardo (Danny Aiello) para lidar com a dor que sente nas costas. Na medida em que a trama de desenvolve, a confusão mental de Jacob aumenta, assim como a intensidade de suas alucinações que se desdobram em momentos de perigo físico para ele.

O que realmente importa, porém, é como Lyne costura o que podemos chama de as três vidas de Jacob com uma construção cirúrgica de um labirinto emocional e físico sem saída que não deixa nada de lado, inclusive a crítica à guerra e à decadência da cidade em que vive, e que arrasta o espectador para dentro desse desespero em forma fílmica. Do momento em que a história começa, no Vietnã, até o ponto em que ela acaba, é como se estivéssemos partilhando da mente de Jacob, de suas inseguranças, de suas dúvidas, de seus amores e de sua tristeza. Mesmo que as pistas da solução do mistério estejam presentes ao longo de toda a narrativa – talvez presentes demais, confesso – e mesmo que seja perfeitamente possível matar a charada ainda no primeiro terço da projeção, Alucinações do Passado não vive pela reviravolta ou por seu fim. Ao contrário, é a jornada psicológica de horror – apenas como um exemplo a descida ao inferno de Jacob na maca do hospital é uma sequência brilhante e absolutamente assustadora e claustrofóbica, que, sozinha, já vale o filme todo – que hipnotiza o espectador, torturando-o e quase que literalmente destruindo-o na medida em que a história avança, sem que haja tempo para respirar.

Alucinações do Passado é uma legítima experiência perturbadora cinematográfica, uma que é tão inacreditável quanto inesquecível e que permanece ecoando na mente do espectador por muito tempo após seu fim. Um longa que pode não ser típico da curta filmografia de Adrian Lyne, mas que revela o britânico como um diretor surpreendente e que não pode – ou merece – ser rotulado. É somente uma pena que ele não tenha continuado com essas experimentações desafiadoras fora de sua usual caixinha de areia.

Alucinações do Passado (Jacob’s Ladder – EUA, 1990)
Direção: Adrian Lyne
Roteiro: Bruce Joel Rubin
Elenco: Tim Robbins, Elizabeth Peña, Danny Aiello, Matt Craven, Pruitt Taylor Vince, Jason Alexander, Patricia Kalember, Eriq La Salle, Ving Rhames, Brian Tarantina, Anthony Alessandro, Brent Hinkley, S. Epatha Merkerson, Kyle Gass, Lewis Black, Perry Lang, Macaulay Culkin
Duração: 113 min.

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