Home FilmesCríticas Crítica | Alvorada (2021)

Crítica | Alvorada (2021)

por Davi Lima
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alvorada

Como um documentário de “invasão da corte”, o filme Alvorada, das diretoras Anna Muylaert e Lô Politi, intenta em captar os últimos dias da presidente Dilma no Palácio do Alvorada em Brasília, durante o processo de impeachment em 2016, quando ela foi afastada do cargo executivo do Brasil. Segundo as diretoras, que em alguns momentos verbalizam como entrevistadoras da presidente, o interesse interno do documentário é desmistificar a personagem Dilma. Independentemente das intenções delas comentadas em tela, ou do que Anna Muylaert denota extra filme, a “invasão” da casa presidencial, no método Cinema Verdade, que busca a voz (história) das pessoas como objetivo primário, de documentar bastidores e o cotidiano de Dilma e do Palácio do Alvorada, produz uma imersão na “personagem” Dilma e no espaço presidencial no lugar comum. O invasivo se torna casual na harmonia da forma comum de documentação com o conteúdo não comum de ambiente.

Desde a primeira cena, após os áudios de Bolsonaro que delimitam o tempo de aprovação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, realista e exposta do método formal do documentário, com uma câmera na mão e a iluminação técnica de gravação aparente, há a sensação de colocar o espectador como intruso no Palácio do Alvorada. Durante o filme, coloca-se algumas músicas, um samba, uma música clássica, mas nunca romantizando, sempre propondo um pano de fundo, semelhante a quando as pessoas ouvem música enquanto fazem outras atividades do dia a dia. Dessa forma, a cada cena, a cada plano estático de alguns segundos mais longos ou mais curtos da fachada do Alvorada, ou da mesa de reunião, o que poderia ser uma foto que contaria alguma história ajuda quem assiste a se acomodar ao cotidiano do espaço do palácio nacional. Pelo som e pelo movimento inerente ao ato de documentar com as técnicas audiovisuais, num tom Cinema Verdade, as diretoras parecem ter um intuito de achar Dilma e achar a experiência do espaço real que ela vive trabalhando como presidente, como mulher e como leitora. 

Em vez de propor algo contemplativo, ou passear levemente com a câmera pelo Palácio, com cenas curtas e estáticas, a montagem indica uma fusão, uma construção da narrativa recheada pelo espaço que contém trabalho e humanidade. Mostra-se o cardápio oferecido no café da manhã, a falta de uma granola chegar à cozinha, os guardas do palácio marchando e o mini drama do filtro das piscinas umidificantes do palácio projetado por Oscar Niemeyer. Não que o documentário faça uma perdurante explicação dos sistemas internos do palácio, contando cada detalhe, mas o que poderia ser delimitado como descanso no filme, nas cenas sujeitas à “desatenção” do espectador, acaba por ser a raiz da história para desembocar no conflito. 

O conflito é a própria gravação, as próprias intenções das diretoras em desmistificar a personagem da Dilma, porque ao mesmo tempo em que tem essa intenção, a câmera e a fotografia definem um ato moral, criando uma personagem presidencial no local de trabalho como termos intrínsecos. E no processo de acompanhar o cotidiano em um contexto temporal, político e fervoroso, entre pedidos da presidente para desligar a câmera em uma reunião, o realismo vai se expondo em inércia.

Acaba que a construção das transições da montagem com o cotidiano vai servindo ao projeto do documentário com imprevisibilidades, mas sem perder a harmonia dos pontos antagônicos. Fora a questão do comum num espaço não comum, o ponto de entrevistar Dilma junto ao conforto do espectador com o ambiente do Palácio vão formando propulsões narrativas imprevisíveis. E nessa imprevisibilidade, o foco de descaracterizar a personagem Dilma e tentar mostrar a Dilma real surge no impasse constante de incomodá-la e colocá-la em destaque. Isso é bem reflexo da fotografia posicionada em contra-plongée nas entrevistas diretas que as diretoras verbalizam em cena. Elas gravam a presidente sentada no sofá, de baixo para cima, numa mistura de imponência e desconforto por a câmera estar próxima às pernas. E isso reflete bem todo o contexto temporal no qual se passa o filme, nunca esquecendo o que de fato está acontecendo enquanto as diretoras estão gravando. 

Elas parecem compreender tão bem isso, e todo o problema do impeachment, que mostram os advogados de Dilma fazendo a defesa, ou ela redigindo textos explicando sobre o PROUNI quanto às contestações de gastos públicos, e todo o trabalho de receber convidados, apoiadores e jornalistas que queriam desfrutar dos últimos possíveis dias de governo. Porém, até isso se harmoniza com o cotidiano, especialmente por causa de Dilma.

Ela que dá o tom ao documentário, ela que entrega as frases e discursos, posições, jeitos e andares que vão compondo o Palácio, na mistura da montagem das diretoras. É como se a unidade cinematográfica se forjasse no processo da narrativa, em que as palavras de Dilma sobre ela ser uma pessoa equilibrada, sobre a fragilidade dos seres humanos e a não crença no mal e no diabo (Eduardo Cunha, que ela cita como sendo uma construção diabólica) decerto vão modificando e complementando, ou sendo modificadas e complementadas, pela gravação do cotidiano no Palácio do Alvorada. Porque como a presidente diz, o Alvorada não é uma casa, uma residência, um lar, ao mesmo tempo sua presença feminina é perceptivelmente influente no ambiente, especialmente nas cenas iniciais, ou nas finais, que mostram várias mulheres atendendo telefones e preparando as cartas para os senadores. 

Percebe-se isso em como Dilma, mesmo vivendo muito tempo no Palácio, parece ainda ter dificuldade de abrir a porta de vidro corrediça, ou o documentário, ao gravá-la distante por vezes, coloca-a nessa posição distante. Ainda assim, por causa de Dilma, as diretoras podem captar micro histórias de mulheres cuidando das joias e roupas da presidente, assim como se emocionando com o passo a passo do processo de julgamento no Senado. Surge, assim, a ambiguidade que engrandece o filme, por tudo que tangencia a produção e pelo método Cinema Verdade de “invasão”. 

Diante dessa ambiguidade, das percepções políticas mais enfáticas sobre o impeachment, como as figurações fúnebres, trágicas e melancólicas – como gravar locais vazios e provocar o esvaziamento, em geral, do Palácio com a progressão negativa para Dilma no julgamento do Senado Federal, representada apenas na TV da cozinha ou em alguma sala de reunião -, em nenhum momento as diretoras saem do ambiente do Alvorada. Essa percepção, entretanto, não toma conta do filme além do fato, a denúncia de golpe e definições políticas ideológicas estão no filme desde o primeiro segundo, mas Anna Muylaert e Lô Politi colocam uma narrativa clássica, digna de um palácio, na maneira comum de representação do cotidiano que implementa uma transformação de esperança e mudança no Brasil na incômoda saída de Dilma do Executivo. 

Ao dar voz para quem completa o Palácio, que trabalha com Dilma e que a ajuda na mudança para sua casa, após sair do cargo da presidência, na cena em que o segurança geral do palácio escreve CASA nas caixas de transporte, sobra cenas em que o espaço tão “invadido” pelas diretoras, tão bem acostumado na experiência do espectador durante o documentário, sente falta personificada da presidente. Mostra-se, assim, mulheres que trabalham no palácio sentarem na cadeira presidencial, assim como algumas mulheres no início do filme são gravadas numa reunião com Dilma afirmando a importância da representação dela no poder. O legado positivo se mistura com a melancolia da saída política da presidente.

Finalmente, a contraposição de invasão e acomodação cria uma harmonia ímpar entre o cotidiano comum e o fato social não comum. Muito semelhante a isso é o pássaro captado pelas câmeras das diretoras que ao andar calmamente até a vidraça confronta seu reflexo desesperadamente ao som de uma trilha sonora. Comparativamente, de maneira abrangente e ambígua, é como se o sentimento romântico/realista da intenção das diretoras de descaracterizar a personagem Dilma fosse denotado de impossibilidade pela própria presidente, é como o próprio reflexo equilibrando a posição documental como a Dilma é de fato, e ao mesmo tempo a mulher perdendo seu cargo, o pássaro querendo caminhar para fora do palácio e ironicamente deixando legados proféticos sobre a política brasileira que a impedem de sair da memória, como pássaro confrontando tendo dificuldade de voar. Isso mostra que os reflexos verdadeiros vão se conectando na harmonização da saída que confronta o que antes foi chegado. 

Como Dilma mesmo diz, é sobre o que vai ser deixado na história que vai importar, não o presente que forma as narrativas. E por isso Alvorada encontra sua história equilibrada pedalando em uma bicicleta, como Dilma fazia e se dizia equilibrada, como o Palácio se tornou ela, e ela, o Palácio, em uma corte republicana de poder que revelou “verdadeiramente” Dilma Rousseff.

Alvorada – Brasil, 2021
Direção: Anna Muylaert, Lô Politi
Roteiro: Anna Muylaert, Lô Politi
Elenco: Dilma Rousseff
Duração: 80 minutos

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