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Crítica | Amarcord

por Luiz Santiago
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Toda memória de infância tem um grande impacto sobre nós, independente do tipo de sentimento que ela nos faz reviver. Na maior parte das vezes, porém, quando escolhemos nos lembrar do cotidiano infantil, das brincadeiras, das conversas dos adultos, das descobertas do mundo à nossa volta, tudo parece vago, solto, quase perdido na nossa linha do tempo… como se estivéssemos vendo um filme sobre a vida de outra pessoa. Este é o formato que Federico Fellini aplica ao seu Amarcord (1973), um filme de recordações e experiências ocorridas entre a infância e a juventude do diretor, uma espécie de contraponto ao seu filme anterior, Roma (1972), cuja visão adulta e crítica compunha a maior parte da obra.

Sem uma história fixa a ser contada, Amarcord tem o formato de uma memória de criança. Falta organização em alguns pontos, certas sequências são vistas com grande requinte de detalhes, enquanto outras lembram um sonho surrealista. Os pais e familiares são profundamente caricatos; os professores transitam entre o cômico, o bizarro e o amedrontador; a política e outros eventos sociais aparecem de maneira quase incompreensível, vistos apenas como um grande evento público, com banda, uniformes, desfiles e discursos.

Diferente da linha narrativa solta adotada em Satyricon e seguida em Roma, não há carência de ícones recorrentes, assim como o tema geral não se perde em pequenas sequências isoladas: é perfeitamente compreensível que todas as recordações estejam centradas em membros da família, na descoberta da sexualidade (com destaque para algumas mulheres-fetiche) e o cotidiano da família Biondi, tudo encerrado em um ano, ou pelo menos é o que entendemos da sucessão de eventos que começam e terminam com os flocos dispersos no ar anunciando o fim do inverno a chegada da primavera. Também é possível entender essa organização temporal como uma metáfora ou um ciclo, contendo alguns pilares da formação de uma criança ou adolescente: a escola, os amores, a família, as brincadeiras, a religião (ou a ausência dela) e a morte.

Mesmo que não tenha o virtuosismo da direção de arte observado em Satyricon, Amarcord consegue ser melhor em imagem e contexto, apresentando com luz e música, textura e figurino, marcos centrais da vida de uma criança (a criança-Fellini), e mesmo que a gente assuma o desenvolvimento temporal em um único ano, percebemos as indicações quanto ao desenvolvimento dos mais jovens e o cotidiano de alegrias e tristezas dos mais velhos.

O filme começa com um plano bastante claro e um clima de festa. As sequências iniciais são mais longas e alternam-se bastante entre diurnas e noturnas. À medida que o tempo avança, temos uma predominância de cenas noturnas e com fotografia mais escura ou mais pálida e as sequências se tornam cada vez mais rápidas. Tanto o tempo quanto a visão do mundo (ou mesmo a memória dele) se modificam: a vida alegre e lenta da infância dá espaço ao desbotado e veloz cotidiano da vida adulta. As coisas se tornam mais sérias e mesmo que o humor não desapareça por completo, compromissos são firmados, perdas modificam a postura em ralação à existência dos indivíduos e uma sequência de responsabilidades aparece junto com o amadurecimento.

Particularmente tenho um carinho muito grande por filmes de memória da infância ou sobre as mudanças psicológicas pelas quais todos nós passamos. Em Fellini, essa representação pode ser vista em uma série de filmes e não apenas na tenra idade, mas é em Amarcord que ele faz isso da maneira mais livre e graciosa possível. Embalado pela música de Nino Rota e marcado pela montagem primorosa de Ruggero Mastroianni, o filme representa uma parte de um caminho da vida, rememorado muitos anos depois e, como toda memória, passível de mentiras e exageros, o que torna esse tempo inalcançável uma espécie de refúgio ideal, um lugar para onde fugir toda vez que a vida posterior a ele se tornar dura demais. Esse é o próprio exercício do diretor ao realizar o filme, e com ele, o espectador partilha da viagem ao passado e toda a aquisição de experiências. Vista em perspectiva, a vida ganha outras cores e mostra muito mais do que obrigações e despedidas. Mostra todo ganho e toda a felicidade que é simplesmente viver.

  • Crítica originalmente publicada em 14 de janeiro de 2014. Revisada para republicação em 11/05/2020, como parte da versão definitiva do Especial Federico Fellini aqui no Plano Crítico.

Amarcord (Itália/França, 1973)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Tonino Guerra
Elenco: Pupella Maggio, Armando Brancia, Magali Noël, Ciccio Ingrassia, Nando Orfei, Luigi Rossi, Bruno Zanin, Gianfilippo Carcano, Josiane Tanzilli, Maria Antonietta Beluzzi, Giuseppe Ianigro, Ferruccio Brembilla
Duração: 123 min.

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