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Crítica | Ambulância – Um Dia de Crime

Para além do típico cinema “montanha-russa” de Michael Bay.

por Michel Gutwilen
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Por mais que Michael Bay seja principalmente um cineasta de atrações, com suas progressivas explosões e desterritorializações (do espaço, do olhar) que se valem por si só enquanto um show exibicionista, isso não significa quer dizer que seus filmes sejam vazios de conteúdo narrativo ou desprovidos de moral e incursões nas filosofias, ideologias, sociologias. Por exemplo, em Ambulância – Um Dia de Crime são perfeitamente aplicáveis as ideias do teórico Henri Bergson, que diz que a essência de alguma coisa sempre aparece no “meio”, ou seja, no curso de seu desenvolvimento — isto é, durante o movimento dos corpos. Assim, a partir de uma narrativa que se passa majoritariamente dentro de um veículo em movimento, a essência de cada um de seus protagonistas vai se revelando a partir das constantes transformações e reconfigurações que eles precisam sofrer das situações que surgem no trajeto. Poderíamos estar falando de Velocidade Máxima, mas não é. Só que não só quem está na ambulância muda, mas a própria cidade ao redor deles também.

Ao brincar com o grafismo do título Ambuncia, apagando todas as letras e deixando apenas “LA”, um novo título escondido do filme surge: Los Angeles, já indicação sobre a tendência da narrativa ser sobre o estado de mudanças das coisas. Como um filme de assalto-e-fuga, é por óbvio que a cidade deve ser um personagem vivo, mas diferente de outras obras que lidam com um espaço mais concreto, a Los Angeles de Bay é um lugar de constante transformação, com essa característica estando impregnada tanto em sua encenação quanto na estrutura narrativa do filme. Como característico na filmografia do diretor, é difícil se localizar espacialmente na ação e muitas vezes nem é possível tentar tirar um sentido lógico das sequências, de modo que a aplicação deste conceito em uma escala macro pela cidade faz dela um espaço que é difícil de se definir e com alta maleabilidade, como se a própria Los Angeles nunca fosse uma só, mas múltipla (do distrito financeiro à periferia; do esgoto às rodovias). 

Mesmo quando emula Fogo Contra Fogo (Michael Mann) em toda a sequência do roubo ao banco, Bay filma a destruição do espaço público repetidamente forçando o espectador a olhar a ação por diferentes ângulos, recortando o espaço uno em múltiplo. Por isso, durante a perseguição, além dos olhares não-diegéticos da câmera, o espectador também é botado no ponto de vista (timidamente, é verdade) dos policiais a partir dos aparatos tecnológicos que eles utilizam, de modo a remoldar o olhar de Los Angeles a partir de uma ótica de hipervigilância e da onisciência do olhar em tempos modernos. Neste jogo de olhares (há muitas pichações de olhos pelas paredes), o ápice formal deste jogo oferecido por Bay é no clímax, quando os protagonistas estão sob a mira dos snipers e o diretor vai criando uma expectativa a partir dos diferentes lugares pelos quais o tiro pode vir.

No mesmo sentido, Bay se afasta tanto de uma noção espacial que isso também interfere em uma percepção temporal do filme, que se prolonga eternamente durante o estado de movimento daqueles personagens. Afinal, a impressão que dá é que eles estão andando por ruas e rodovias infinitas, cruzando uma cidade inteira a partir de uma geografia completamente labiríntica sem sentido. Por um lado, isso provoca um afastamento do campo verossímil para o espaço psicológico, como se essas longas estradas infinitas se tornassem apenas um lugar de passagem para que os personagens resolvam seus conflitos internos a partir dos campo da comunicação e da ação interna. Mais do que os espaços que eles passam, importa que eles estejam sendo postos à prova durante o estado de movimento. 

Já no âmbito da narrativa, Ambulância também está sempre se reinventando. Como típico do próprio subgênero de fuga, os seus protagonistas precisam se adaptar a novas situações que vão surgindo, recalculando planos e rotas a todo instante, o que dá um maior grau de imprevisibilidade ao que irá acontecer. Além disso, a trama vai ganhando uma complexa teia de relacionamentos a partir de personagens que surgem espontaneamente para cumprir um papel narrativo. Isso é tão exagerado que chega a ser cômico: em um momento de tensão, a enfermeira precisa ligar para seu namorado (que até agora não havia aparecido), que por sua vez liga para outros médicos que estavam jogando golfe. Similarmente, no meio do filme surge um especialista a assalto em banco que é convenientemente amigo de infância do protagonista ou conhecemos uma gangue latina que deve favores a ele. 

Apesar da brincadeira com o conceito de Deus Ex Machina, essa adição irrealista de personagens que possuem elos entre si vai causando um efeito acumulatório que dá a ideia da cidade como um organismo vivo e multiconectado, sempre dando um frescor de possibilidades à narrativa. Inclusive, que os vários personagens secundários sejam extremamente múltiplos também reforça como Bay entende que os espaços e posições sociais estão em movimento e a sociedade dos EUA está mudando. Ainda que ele não faça do seu filme sobre isso, não é gratuitamente que existe um investigador abertamente LGBTQIA+, uma enfermeira latina, um ex soldado negro, uma policial com descendência judia e até, porque não, uma família formada por um homem e seu cachorro (as cenas envolvendo o animal envolvem o ápice do non-sense do diretor desde os cadeirantes de Bad Boys). 

Assim, para entender melhor do que se trata essa ideia dos personagens em movimento, é preciso contextualizá-los. A primeira imagem que Michael Bay abre seu filme é a de um menino negro, no passado, brincando por uma área periférica. Depois, no presente, o mesmo garoto, agora adulto, já está casado e com filho. História de sucesso do american dream? Errado, já que em poucos minutos Bay mostra (até didaticamente demais para meu gosto) que ele é um ex-veterano de guerra incapaz de pagar o tratamento de uma doença para sua esposa. Por isso, ele decide recorrer a seu irmão adotivo, um ladrão de bancos (cujo pai também era), para conseguir o dinheiro necessário. Desde já, o filme estabelece o banditismo do protagonista como sendo movido por uma causa nobre, além de ser um homem que serviu à Pátria e foi abandonado por ela.

Durante o desenvolvimento da narrativa, o movimento cria situações para comprovar a tese inicial oferecida. Isso é, de que Will Sharp é um bom homem em essência e foi levado até aquela situação por uma multiplicidade de fatores externos ligados a sua criação, em oposição à seu irmão adotivo, Danny, maniqueisticamente vilão. Dessa maneira, dentro da dinâmica fraternal vai se formando um antagonismo interno. Já ao fim do filme, quando os dois se despedem pela última vez, um novo flashback surge para reforçar a diferença de posições entre eles, mostrando uma brincadeira de polícia e bandido, na qual Will assumia a posição de xerife. Então, um reforço final na mensagem essencial do filme: um menino que sonhava em ser policial, que acreditava em servir a Lei e o país, foi levado ao lado oposto pelas circunstâncias da vida. 

Aliás, é curioso como algumas questões raciais vão se desenvolvendo espontaneamente na narrativa, ainda que talvez nem sejam a intenção inicial de Bay. Entre elas, existe uma força simbólica na ação de um homem negro doar seu sangue para um policial branco, já que neste aspecto as tensões do mundo real são transcendidas para o espaço fílmico. Não há algo de puro no personagem em salvar justamente aquele estereótipo que costuma ser uma ameaça para ele? Como consequência, essa cena reforça a temática central que envolve a ideia de romper barreiras e pensar a sociedade a partir de transformações e uniões, de dois sangues que agora correm juntos.

De igual modo, essa força simbólica que contamina o espaço fílmico a partir dos medos do mundo real também está presente no plano de Yahya Abdul-Mateen II deitado no chão, com as mãos amarradas nas costas. Difícil naquele momento não pensar em George Floyd e na possibilidade do personagem ser asfixiado a qualquer momento. Só que fugindo do pessimismo, eis que surge a figura do outro policial, também negro, que decide ajudar o protagonista, carregando ele junto com a enfermeira. É como se neste momento aquele homem botasse a questão de raça antes da vingança pessoal e enxergasse que o que separou ele daquele “irmão de raça” foram apenas algumas escolhas diferentes e oportunidades ao longo do caminho.

Portanto, é assim que o arco do protagonista se resolve a partir da ideia de perdão. Não é exatamente um encerramento utópico, porque no fim das contas ele ainda está preso legalmente, mas se trata mais muito de um reconhecimento externo (dos policiais, da família) de sua própria bondade e como ele mesmo é moralmente inocente diante de tudo que aconteceu com ele, valorizando-se a ideia do homem que faria tudo por sua família. Similarmente se resolve a trajetória da enfermeira (que por sinal, é latina, mas Bay não expande tal questão), que passa por uma transformação durante a trajetória ao sair de uma condição profissionalizante da medicina enquanto parte de um tecnicismo despersonalizado para uma formação humanista.

Agora, é claro que o filme não é perfeito. Primeiro, há no mínimo 10 minutos a mais do que deveria, principalmente porque a narrativa se estende redundantemente depois de já ter ficado claro ao espectador as jornadas e mudanças de cada personagem. Em segundo, falta confiança de Michael Bay nos seus atores, já que para mostrar todas essas transformações e mudanças internas nos personagens ele recorre a muitas manipulações apelativas que tentam gerar um sentimentalismo à fórceps nas cenas mais íntimas, sabotando assim sua própria ideia. Não há quem aguente alguns truques de iluminações que geram luzes estouradas meio espirituais que atravessam as janelas, pontuações fortes da trilha sonora e até uma câmera lenta aqui e acolá — o que não é um problema na ação, mas sim no drama.

Ambulância – Um Dia de Crime (Ambulance) — EUA, 2022
Diretor: Michael Bay
Roteiro: Chris Fedak
Elenco: Jake Gyllenhaal, Yahya Abdul-Mateen II, Eiza González, Garret Dillahunt, Keir O’Donnell, Jackson White, Olivia Stambouliah, Moses Ingram, Cedric Sanders, Colin Woodell, A Martinez, Jesse Garcia
Duração: 136 mins

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