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Crítica | Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie

por Cida Azevedo
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Ifemelu e Obinze são jovens universitários nigerianos. Namorados. Mas o país vive dias difíceis, com greves constantes de professores e universidades fechadas, o que leva Ifemelu a emigrar para os EUA após conseguir uma bolsa de estudos. E a partir daí perceberemos que o romance Americanah é mais, muito mais que a história de amor, encontros e desencontros do casal – é, antes, um grande romance de costumes, que entre Nigéria, EUA e Inglaterra vai envolvendo o leitor numa trama permeada por frustrações, identidades, sonhos e dificuldades, conquistas e separações. O enredo, centrado em Ifemelu principalmente, acompanhará essas vidas por mais de dez anos, período em que ocorrerão profundas transformações em todos – inclusive em seu país de origem.

Ao chegar à América, a até então nigeriana Ifemelu percebe que sua identidade ganha um traço a mais – e determinante em sua vida no país: negra. A moça que até então só se via como africana cria um blog sobre as nuances do racismo no país, o Raceteenth, o qual será responsável por algumas das melhores passagens do livro. A partir de certo ponto, os capítulos trazem, ao final, posts ou trechos do blog com questões que vão desde colorismo, cabelos crespos e identidade até Barack Obama – então, em campanha presidencial pela primeira vez. A questão racial é central no livro, tratada sem sutilezas e com uma boa dose de sarcasmo. Ifemelu, ácida desde as primeiras páginas, tem uma visão aguçada e uma escrita incômoda ao tratar do assunto, o que com certeza é o plus do romance.

Americanah se mostra uma obra bastante moderna, desenvolvida entre universidades, blogs e viagens e abrindo espaço para temas como – além do racismo – imigração ilegal, feminismo, depressão e política. Apesar de não ser construído sobre aventuras hiper emocionantes ou acontecimentos épicos, seu tom realista o torna extremamente verossímil. Em certos momentos, é difícil pensar que se trata apenas de ficção. É fácil imaginar que a obra possui elementos autobiográficos, dado seu teor tão verdadeiro. E esse é um dos grandes trunfos da talentosa escritora Chimamanda: sua visão reflexiva da realidade, emoldurada por ironias ora sutis, ora nem tanto, que dão à sua escrita uma força considerável – e que tornam a leitura de Americanah não só interessante, mas quase um exercício filosófico.

Assim como em outros romances contemporâneos, a questão da identidade – a perda e a busca desta – ganham destaque. Ifemelu sofre reviravoltas nesse sentido: primeiro a moça nigeriana recém-chegada aos EUA; mais tarde, de volta à Nigéria 13 anos depois, acompanhada de todo o estranhamento de quem não se reconhece mais em casa. Sua identidade como negra e a aceitação do seu cabelo também são relevantes. Mas, além dela, também se destacam Obinze, em uma experiência de imigração pra lá de tensa na Inglaterra, e tomando um rumo na vida adulta que nunca imaginou e que o deixa bastante infeliz; e Dike, o primo de Ifemelu criado nos EUA, que não conheceu o pai e que tem uma grave depressão. Embora desenvolvidas em níveis de profundidade diferentes, essas três personagens estão em busca de si mesmas, como é típico do herói do século XXI.

A humanidade das personagens é outro ponto forte do livro: Obinze e Ifemelu não são idealizados. Ela é bastante independente e questionadora, mas também confusa e um tanto egoísta, cometendo erros nos quais não é difícil se enxergar. Ele, calmo, discreto, intelectual, mas que se vê arrastado pela vida para caminhos eticamente duvidosos, que não lhe permitem ter paz. A construção do relacionamento dos dois é bem crível, e a tensão pelo reencontro acompanhará o leitor durante boa parte do texto. Cabe ressaltar que os problemas enfrentados por ambos não têm nada de novelesco – como um triângulo amoroso dramático ou famílias rivais – mas são realistas e levam a refletir sobre a dinâmica dos relacionamentos e em como a vida, às vezes, pode ser terrivelmente complicada.

De fato, o romance de Obinze e Ifemelu é o fio condutor da trama, mas acaba ficando em segundo plano diante de tantas problemáticas mais urgentes. Complementar a isso, algumas vezes cenas e personagens secundários, quase figurantes, tornam-se significativos na medida em que trazem consigo representações e discussões que possivelmente marcarão o leitor. Como exemplo, Ifemelu conhece, em uma cena, um determinado rapaz negro que esteve no Brasil e comenta sobre o mito da igualdade racial, já que em todos os hotéis e restaurantes caros que frequentou, não viu nenhum negro além de si mesmo. Essas personagens muitas vezes viram histórias no blog de Ifemelu, e com seus textos ela nos leva a pensar em outras camadas que muitas vezes não perceberíamos sozinhos. Frequentemente, a identificação com o Brasil é inevitável.

Americanah é um livro moderno que tem tudo para se tornar clássico. A crítica negativa fica por conta da extensão desnecessária do livro, que poderia ter sido escrito com cem páginas a menos tranquilamente. No entanto, um leitor aberto encontrará muito em que pensar e talvez muito a desconstruir após ver o mundo pelos olhos de Ifemelu – a quem o narrador se cola durante grande parte da narrativa. A moça africana, negra e imigrante tem muito o que falar. E nós, leitores ocidentais, quiçá brancos, quiçá homens, temos mais ainda a ouvir e a compreender.

Americanah (Nigéria, 2013)
Autora: Chimamanda Ngozi Adichie
Publicação original: Editora Random House (no Brasil pela Companhia das Letras)
516 Páginas

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