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Crítica | Amores Brutos

por Marcelo Sobrinho
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“E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra.”

Gênesis, capítulo 4 (sobre Caim e Abel), versículos 10 a 12

Amores Brutos é um daqueles filmes que os entendedores de cinema adoram reverenciar. Mesmo tendo recebido acusações sérias de maus tratos aos cachorros que aparecem no longa-metragem (o que não aconteceu de fato, pois as cenas de rinha de cães não foram reais), o que se viu em seguida foi uma adoração quase unânime ao primeiro trabalho de Alejandro Gonzalez Iñarritu. O diretor mexicano estreou em longas-metragens no ano 2000 com um filme que até hoje tem seu lugar garantido nas conversas dos cinéfilos. Nada mais cult que dizer o quanto se é apaixonado por Amores Brutos.

Costumo sempre dizer que a técnica cinematográfica (e artística em geral) deve sempre ser um meio para produzir significados e nunca a finalidade última de uma obra, que assim não passaria de virtuosismo barato. Muito se fala sobre a “genialidade” de Iñarritu ao costurar três histórias de forma não linear. A câmera nas mãos e as angulações com um toque amador e despreocupado continuam motivo de enorme admiração. Mas todo esse culto à forma do longa-metragem me soa bastante bobo, já que filmes vagabundos e descartáveis também já foram feitos usando esses mesmos elementos. Felizmente, esse não é o caso de Amores Brutos (tradução pobre para Amores Perros, que significa literalmente “Amores Caninos”, em referência à participação central dos cães em todos os núcleos da obra).

Iñarritu nunca é a forma pela forma, por mais que os críticos insistam em reverenciar sempre os mesmos pontos de Amores Brutos. São sempre os mesmos “olhos de Capitu”, que fazem parecer que basta entrelaçar três ou quatro histórias, com alguma habilidade de direção, para se criar um filme genial. O que me impressiona de verdade no mexicano é a sensibilidade quase obscena com que ele trata da humanidade de seus personagens. Sua dor nunca é embotada. O sofrimento e o infortúnio não tem alívio fácil. A sujeira aparece sem reservas. E a nudez nunca esconde a imperfeição dos corpos. É preciso entrar no cinema de Alejandro González Iñarritu como quem entra em terreno pantanoso. E é isso que nos oferece Amores Brutos, filme que inicia uma trilogia apelidada de Trilogia da Morte ou Trilogia da Perda, sobre a qual escreverei na íntegra e que inclui ainda o fulgurante 21 Gramas (lançado em 2003) e um encerramento muitíssimo digno com Babel (de 2006).

No primeiro núcleo de Amores Brutos, Octavio (Gael García Bernal) é um homem apaixonado por Susana (Vanessa Bauche), mulher de seu irmão, que sempre apanha do marido e está novamente grávida dele. Planejando uma fuga com ela, o personagem de Gael García Bernal usa seu rottweiler em rinhas sangrentas de cães para conseguir o dinheiro de que necessita. O roteiro de Guillermo Arriaga revela a dualidade irracional entre brutalidade e amor. O próprio cão de Octavio traz em si essa ideia – ora está no ringue, matando seu oponente, ora está em casa, fiel e amoroso com seu dono. Susana ama seu marido mesmo quando é surrada por ele. Octavio busca o amor da jovem por meio de batalhas mortais. E Ramiro (Marco Pérez), que espanca todos à sua volta, é o mesmo que sorri abraçado ao irmão nas fotos da família. Cada personagem desse trio demonstra a mesma contradição do cão Cofi, que mata e ama com a mesma intensidade. E como numa rinha, essa história só terá fim com a morte de um deles.

O segundo núcleo traz à cena Valeria (Goya Toledo) e Daniel (Álvaro Guerrero). Recém-separado de Julieta, Daniel compra um apartamento luxuoso para viver com Valeria. Justificando a alcunha de Trilogia da Perda, os antigos amantes agora experimentarão como marido e mulher um desmoronamento de todas as suas expectativas. Valeria envolve-se no acidente automobilístico que entrecruza as três histórias, fraturando a perna e apresentando complicações que terminarão por destruir sua carreira de modelo. A cena em que ela observa o outdoor com sua foto ser retirado é emblemática. As brigas entre ela e Daniel tornam-se insuportáveis. E o cachorrinho Ritchie, que se perde num buraco sob o chão do apartamento, late periodicamente pedindo ajuda, como o passado que não se deixa esquecer e que denuncia todas as ilusões que se perderam no caminho. Um caminho que não permite recuo.

Acho a terceira e última história de Amores Brutos a mais interessante. Chivo (Emilio Echevarría) é um ex-guerrilheiro que vive agora como matador de aluguel. Por seus erros, viu-se separado de toda a sua família e ainda o fere profundamente a falta de sua filha. No fatídico acidente de trânsito, Chivo acaba adotando o cão Cofi, à beira da morte e encharcado de sangue. O cachorro sobrevive graças aos seus cuidados. Os dois momentos do filme que considero realmente brilhantes estão nesse terceiro núcleo (o filme é muito bom, mas não o considero uma obra-prima absoluta, como muitos insistem em dizer). É catártico o momento em que Chivo chega em casa e vê que todos os seus cães foram mortos por Cofi. Os dois, matadores implacáveis, encontram-se como iguais diante dos corpos em chamas. Amam-se, enfim, como dois cães apartados de suas matilhas.

O segundo momento arrebatador acontece logo a seguir, após Chivo tomar banho, cortar os próprios cabelos e fazer a barba (a trilha sonora de Gustavo Santaolalla pontua muito bem essa cena extraordinária). O matador de aluguel torna-se novamente o pai e o marido de outrora. Martín, como é seu verdadeiro nome, coloca então, frente a frente, dois irmãos, um que ele deveria matar e o outro que havia contratado o serviço. Uma pistola é posta entre os dois e agora eles podem escolher se amar como irmãos ou se matar como dois cães raivosos. Martín percebe a facilidade de eliminar um inimigo indesejável, mas a imensa dificuldade de olhá-lo de frente, pois o outro é como uma Górgona que nos olha de volta. Sua mão nunca vacilara na hora do tiro, mas sua voz embarga em um telefonema há muito esperado.

Alejandro González Iñarritu afirmou em uma entrevista que seus filmes são sobre a vida e não sobre a morte. Em Amores Brutos, todos os personagens vivenciam suas experiências de dor como oportunidades de transformação. Tomando emprestado o pensamento heraclitiano, é possível entender a vida exatamente assim – como metamorfoses que se sucedem a cada instante e das quais participam perdas numerosas. Essa ideia será mote também dos outros filmes da trilogia, que reserva com 21 Gramas e Babel resultados (a meu ver) mais maduros e ainda mais impressionantes.

Amores Brutos (Amores Perros) – México, 2000
Direção: Alejandro González Iñarritu
Roteiro: Guillermo Arriaga
Elenco: Gael García Bernal, Vanessa Bauche, Marco Pérez, Goya Toledo, Álvaro Guerrero, Emilio Echevarría, Jorge Salinas, Rodrigo Murray, Adriana Barraza, Humberto Busto, Lourdes Echevarría, Rosa María Bianchi, José Sefami, Gustavo Sánchez Parra, Dunia Saldívar, Riccardo Dalmacci
Duração: 155 minutos

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