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Crítica | Amores Expressos

por Luiz Santiago
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Wong Kar Wai foi um dos fortes representantes das modificações no campo cinematográfico que ocorriam no triângulo Hong Kong – China – Taiwan em meados dos anos 1980. Seu cinema é pontuado por uma forte vitalidade e estética primorosas, algo que já percebemos em sua estreia, Conflito Mortal (1988). A partir de Dias Selvagens (1990), seu segundo filme, identificamos a presença de uma identidade criativa, não apenas estética, mas também temática. Figurinos estilizados, pessoas comendo, pessoas fumando, a passagem do tempo através de contadores na tela (relógios, calendários), a violência e o amor em todas as suas complicações passaram a ser a alma de suas películas. Essa alma ainda recebe uma inesquecível trilha sonora e uma fotografia notável, elementos que recebem cuidados especiais do diretor, muitas vezes em detrimento do roteiro, deva-se dizer.

Mas engana-se quem acredita que ver um filme de Wong Kar Wai é apenas contemplar um desfile de ingredientes autoriais próprios e escrupulosa realização técnica. Em todas as suas incursões pelo ambiente do amor o diretor conseguiu trazer uma visão particular para o tema, seja pela continuação do drama de personagens em seus filmes (não vamos nos aprofundar nesse tema, mas Kar Wai é responsável por uma verdadeira saga de indivíduos que atravessam décadas em cada um de seus longas), seja pela abordagem social diferenciada, ou do micro ambiente geográfico em que elas se encontram.

Mesmo que Hong Kong (especialmente nos anos 60) seja o cenário preferido do diretor, há variações de espaços e contextos em que suas personagens estão presentes. Em Amores Expressos essa colocação geográfica e social se dá em duas partes. Na primeira, um policial (nº223) tem o coração partido quando o namoro é terminado. Embora questionemos a existência dessa garota (já que nunca a vemos), acompanhamos o sofrimento do jovem, que é magistralmente interpretado pelo taiwanês Takeshi Kaneshiro. Na fase final de seu conto de amor, ele se apaixona por uma poderosa mulher do mundo do crime. A cena em que ele, bêbado, pede para fazer companhia para ela em um bar é um os encontros mais icônicos de um casal que eu já vi no cinema. A mesma coisa se dá para a cena seguinte, no hotel, quando ele come a noite praticamente inteira, assistindo a filmes chineses antigos.

O segundo conto é mais delicado e tocante. Desta vez, trata-se do policial 663, que namora uma aeromoça e que, algum tempo depois, também se vê sozinho. Sua vida é invadida, sem que ele saiba, pela graciosa Faye (pepel interpretado por Faye Wong, que voltaria a trabalhar com Kar Wai em 2046 – Os Segredos do Amor). O diretor executa de maneira lenta uma das coisas mais interessantes em relação a um romance. Aproveitando-se da fraqueza do policial 663, Faye literalmente redecora sua casa, substituindo a memória da namorada antiga pela sua memória, pela sua presença. Roupas, fotografias, ursos de pelúcia, música, peixes de um aquário, chinelos, canecas… tudo passa por uma meticulosa transformação.

Um dos pontos mais tocantes da narrativa é quando Faye está na casa do policial e ele coloca uma música (California Dreamin’, sucesso do The Mamas & The Papas), dizendo que foi uma música marcante de sua namorada anterior, mas na verdade a música fora plantada por Faye na vida do policial. O CD era dela, nunca pertencera à namorada anterior. Essa manipulação benéfica e ao mesmo tempo incômoda traz à tona, como não podia deixar de ser, um amor para o qual o policial estava sendo preparado todo o tempo. E mesmo depois de anos, quando revê Faye (que se torna uma aeromoça, vejam só a ironia!), esse sentimento está lá, e como qualquer sentimento arrebatador de amor, pronto para qualquer coisa.

Kar Wai consegue plasmar uma experiência única em Amores Expressos. A fotografia de Christopher Doyle e Wai-Keung Lau se harmoniza perfeitamente a cada um dos contos, obedecendo a atmosfera local mas, em ambos os casos, atuando quase como uma ironia (vide a aconchegante iluminação do bar em que o policial 223 conhece a criminosa). Os sentimentos dos personagens ganham forma tela e seus amores e separações nunca pareceram tão reais e tão presentes para o espectador. Embora a parte final do filme tenha uma considerável quebra de ritmo narrativo (para deixar claro, refiro-me ao roteiro, não à montagem), Amores Expressos continua sendo um poderoso, belo e inesquecível filme sobre o amor.

Amores Expressos (Chung Hing sam lam) — Hong Kong, 1994
Direção: Wong Kar Wai
Roteiro: Wong Kar Wai
Elenco: Brigitte Lin, Tony Chiu Wai Leung, Faye Wong, Takeshi Kaneshiro, Valerie Chow, Jinquan Chen, Lee-Na Kwan, Zhiming Huang, Liang Zhen, Songshen Zuo
Duração: 102 min.

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