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Crítica | Anatomia do Medo

por Luiz Santiago
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Anatomia do Medo (1955) é um dos meus filmes favoritos de Akira Kurosawa, e dentre os muitos motivos que me faz adorá-lo, posso citar, de início, os dois principais: a visão crua e contemporânea sobre o significado da guerra e a discussão sobre insanidade, medo e paranoia. Realizado após Os Sete Samurais e já na fase laureada do diretor, Anatomia do Medo trabalha uma questão político-social pelo viés humano, o do patriarca Kiichi Nakajima, que temendo um desastre causado por bombas A e H, inicia a construção de um abrigo subterrâneo para proteger à si a sua família. Quando o empreendimento falha, o sr. Nakajima propõe que toda a sua família migre para o Brasil. O local almejado é uma fazenda no interior de São Paulo, onde, aparentemente, todos estariam livres de qualquer efeito causado por qualquer guerra.

Depois de dois filmes de caráter político, Não Lamento Minha Juventude e Um Domingo Maravilhoso, Kurosawa fala abertamente sobre bombas, guerra e destruição. O roteiro do filme, uma parceria com três outros grandes roteiristas japoneses, consegue colocar na tela algo que seria o equivalente ao quadro O Grito, de Edvard Munch, tamanho é o desespero do protagonista. A guerra e a possibilidade de um ataque nuclear alcança aqui o seu maior valor, o da destruição completa. Em nenhum momento do filme ouvimos a palavra “reconstrução” ou “sobrevivência”. Uma nova guerra, nesse momento, seria fatal para todos.

Intricada a essa questão pessoal de um senhor de idade, a família se põe como o grande obstáculo para seus planos de salvação. Os filhos simplesmente se recusam a deixar o Japão e migrar para o Brasil, e como o velho persiste na ideia, eles abrem uma ação judicial contra o pai, tentando declará-lo incapaz de administrar suas finanças. O corpo da obra perpassa por toda essa relação familiar conturbada, ainda mais porque se trata de uma família numerosa e conta ainda com filhos fora do casamento e as antigas mulheres do patriarca, que são sustentados por ele e também inclusos no plano de migração.

Kurosawa repousa a câmera mais vezes, evitando movê-la em todos os quadros e filmando cenas um pouco mais longas do que ele habitualmente filmava. A película ganha aos poucos um ar mais analítico e dramático. À medida que o desejo de proteção do patriarca se torna uma obsessão, seus dissabores começam a aparecer, e não são poucos. Os filhos se recusam lhe emprestar dinheiro e ainda armam uma situação que fará com que o pai pareça realmente incapacitado frente ao tribunal para o qual ele apelou após a primeira sentença. Em Cão Danado e Viver, o cineasta já havia mostrado a complicada relações entre pais e filhos, focando no abandono e no desprezo. Em Anatomia do Medo, a situação se repete, mas por um motivo de importância muito maiores. Numa posição quase quixotesca, o protagonista representa a visão antibelicista do diretor, como também o seu repúdio à guerra, questões que voltaríamos a ver em filmes futuros como Sonhos e Rapsódia em Agosto.

SPOILERS!

Toshiro Mifune é a verdadeira estrela do filme, no papel do velho patriarca Nakajima. Quando eu assisti ao filme pela primeira vez, fiquei procurando o ator a projeção inteira, e cheguei até a acreditar que a citação do nome dele nos créditos iniciais tinha sido um erro grosseiro. Mas qual não foi a minha surpresa ao descobrir que Mifune era o protagonista! A equipe de maquiagem, a direção de Kurosawa e o talento do ator fizeram com que Kiichi Nakajima se tornasse uma personagem incrível e irretocável. Mifune tinha 35 anos na época, então, nem de longe se parecia com o senhor que interpretou, e mesmo assim, sua caracterização, voz e loucura ao final da fita são simplesmente admiráveis, sem dúvida uma das melhores interpretações da carreira do ator.

Vencido na luta contra os parentes, Nakajima resolve partir para uma última tentativa, aquela que o levará para um outro plano de existência: o do refúgio completo em sua própria mente, em seu próprio planeta interior. As últimas sequências de Anatomia do Medo trazem ainda uma grande culpa e uma crise moral. Kurosawa também questiona o “lado de cá” e traz à tona a postura inegavelmente egoísta do velho em querer salvar a própria família e se esquecer dos outros, seja para abandoná-los à própria sorte, seja para deixá-los sem trabalho, em decorrência do incêndio provocado na fábrica.

Quando a salvação não é possível e a ameaça ainda existe, o homem só tem uma escolha: refugiar-se em si mesmo ou se entregar à morte. No caso do sr. Nakajima, temos a ocorrência da primeira opção. No final das contas, ele conseguiu se proteger das bombas. O medo não existe mais. O planeta em que ele mora está a salvo de ameaças, ao contrário da Terra, que ele vê ardendo em fogo, na lancinante última cena do filme.

Kurosawa passa então da loucura como refúgio para o silêncio como realidade. Quem vive melhor? O louco protegido em seu mundo ou os outros, sempre ameaçados? A resposta não poderia ser mais aterradora: o profundo silêncio. Numa cena bastante simbólica, uma personagem sobe e outra desce a rampa do hospício. Parece que a vida se resume a isso mesmo. E como se não bastasse a angústia, nada mais é dito. O filme acaba. Anatomia do Medo é uma obra para ser revisitada de tempos e tempos, especialmente hoje, quando os Senhores da Guerra teimam em fazer da destruição a “eterna novidade” dos nossos dias na Terra.

Anatomia do Medo (Ikimono no kiroku) – Japão, 1955
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Shinobu Hashimoto, Fumio Hayasaka, Akira Kurosawa, Hideo Oguni
Elenco: Toshirô Mifune, Takashi Shimura, Minoru Chiaki, Eiko Miyoshi, Kyôko Aoyama, Haruko Tôgô, Noriko Sengoku, Akemi Negishi, Hiroshi Tachikawa, Kichijirô Ueda, Eijirô Tôno
Duração: 103 min.

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