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Crítica | Antes do Incal

por Luiz Santiago
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SPOILERS de O Incal.

Após o término da saga O Incal de Alejandro Jodorowsky e Moebius, os fãs ficaram órfãos de uma realidade distópica inesquecível, o que fez com que pedissem por mais, muito mais coisas relacionadas ao Jodoverse. A abertura que os artistas haviam deixado ao fim de A Quintessência: Planeta Difool permitia que a história tivesse uma sequência ou pelo menos algum spin-off mostrando o Universo depois do fim dos tempos e da reconfiguração de toda a realidade ali executada. Ainda em 1988, Jodorowsky embarcou em um projeto ambientado naquele Universo, mas não uma sequência e sim uma pré-sequência, mostrando a realidade da Terra #2014, sua sociedade e todos os principais personagens que futuramente fariam parte da jornada de união entre o Incal Negro e o Incal Luminoso. Em entrevista, o autor afirmaria o seguinte:

Eu sempre pensei no Incal como um tríptico. Em um tríptico você olha primeiro para a imagem central (o presente, que é a série “Incal”). Em seguida, você olha para a imagem à esquerda (o passado, que é “Antes do Incal”). E para a imagem à direita (o futuro, “Incal Final”).

O problema é que para Antes do Incal, Jodorowsky não podia contar com Moebius, que já estava comprometido com Stan Lee, desenhando Surfista Prateado – Parábola e escrevendo e desenhando o seu independente Escala em Pharagonescia. Foi então que Zoran Janjetov, um discípulo de Moebius, apareceu na jogada e Jodorowsky gostou tanto do estilo dele que o chamou embarcou em um prequel de 6 livros, ao longo de 7 anos. Segue abaixo, cada um dos tomos originais de Antes do Incal, mais a sua data de lançamento na França.

  1. Adeus ao Pai (outubro de 1988);
  2. Detetive Particular Classe “R” (abril de 1990);
  3. Croot (setembro de 1991);
  4. Anarquistas Psicóticos (maio de 1992);
  5. Vhisky, SPV e Homeo-Prostitutas (maio de 1993)
  6. O Beco do Suicídio (maio de 1995).

Como os títulos deixam claro, cada livro tem como foco um elemento do Universo de O Incal, mas não demora muito para o leitor perceber que esses títulos apenas indicam pontos de partida, pois os tomos seguirão uma linha fluída de histórias com dezenas, centenas de informações e personagens, sempre tendo John Difool como guia. Em Adeus ao Pai, há uma breve introdução falando sobre a Terra #2014, a Cidade-Poço, o Anel Vermelho; o Tecno-Papa, os Tecno-Tecnos e a Endoguarda Púrpura; o Prez e o Exército Corcundas; os Aristos, os Cybo-Tiras e o Supra-Divinoide. Mesmo para quem leu O Incal há muito tempo, as informações e problemas aqui apresentados não devem trazer nenhuma dificuldade porque o roteiro consegue tornar esse Universo mais jovem um “novo” Universo, apesar de já o conhecermos do futuro.

Mas além de trabalhar com personagens e cenários já conhecidos, Jodorowsky criou coisas novas, abrindo janelas que jamais imaginávamos existir na Cidade-Poço e tornando ainda mais complexa a vida e todas as instituições locais. Nesse aspecto, o autor é mais burocrático e social e bem menos místico que em O Incal, fazendo jus ao que a obra pede e deixando claro para nós o contraste da narrativa entre o momento em que John Difool encontra uma das partes do supra-elemento e a sua vida ordinária antes disso acontecer. Os tomos finais até mostram uma força mais expressiva do Tecno-Papa e a quebra de relações entre Animah e Tanatah, bem como o próprio Incal se manifestando, mas ainda assim, o foco é quase totalmente social.

As críticas já esperadas à televisão e aos inúmeros tipos de vícios aparecem em cada um dos livros, mas existe muito mais coisas em jogo e problemas bem mais seminais em pauta; problemas que podem, em última análise, dar alguma impressão de anticlímax para partes da história, porque há blocos inteiros dedicados a jornadas que são massacradas pela chantagem do triunvirato opressor da Terra #2014, utilizando-se dos laços amorosos para que a longa investigação que revelou a existência do halo dos Aristos jamais venha à tona, por exemplo.

Em contrapartida, há um certo incômodo na forma como o último tomo se constrói, não porque ele seja ruim, longe disso, mas porque se mostra rápido demais e muito focado em dissecar problemas particulares — a briga de Animah e Tanatah é um exemplo disso — do que lançar bases mais firmes para o próprio Incal ou outros personagens como os Bergs, que só vemos brevemente no lixão de Gorgo, o Pútrido. Tendo esses seres desempenhado um papel tão importante a partir de O Incal Negro, eu esperava que pelo menos um trabalhar de sua chegada na Terra #2014 e sua ida a alguns dos níveis inferiores fosse mostrada. Mesmo assim, o leitor consegue ter aqui um cenário terrível e que explica ou justifica muita coisa no enredo adiante. Apesar das pequenas faltas e excessos no tratamento de certas relações pessoais, Jodorowsky faz um excelente trabalho nessa história que é um terrível passado.

Zoran Janjetov, apesar de admirar e seguir o estilo de Moebius, jamais tenta imitá-lo. É claro que o tratamento visual é bastante similar, pelo motivo já explicado, mas a finalização de Janjetov é diferente, com linhas mais grossas, mais rudeza na delineação dos personagens e diagramação de página bem menos ousada — um ponto negativo a se lamentar. Seria interessante que ele seguisse o mesmo padrão de organização de Moebius, com uma organização mais burocrática no início e algo mais livre e inovador no final. –. Sua arte cabe muito bem à história contada e as cores de Fred Beltran e Valérie Beltran (nos dois tomos finais) completam a tristeza e sujeira que dominam esse mundo. Diferente de O Incal, Antes do Incal é frio, opressor e completamente desesperançoso. É claro que algumas dessas características são mantidas na sequência da história, mas há algo diferente no ar, tudo parece fluir de maneira diferente ali, agora que temos essa perspectiva de comparação, algo que pode imediatamente ser percebido tanto pelo estilo artístico com hachuras e outros detalhes que distinguem Janjetov de seu mestre quanto pelas cores mais frias e/ou mais escuras utilizadas nos volumes.

É um prazer enorme ver como Alejandro Jodorowsky estendeu aqui o tapete para a saga que viria. De forma corajosa e fortemente ligada a questões seculares que vão de discussões bioéticas até neo-imperialismo, ecologia, religião, extermínio ou segregação de minorias e estratificação social, o autor, ao lado de Janjetov, criou uma realidade que em inúmeros aspectos são assustadoramente semelhantes à nossa sociedade. E de forma muito incômoda nos dá a impressão de que representará, também em muitos aspectos, parte de nossa sociedade no futuro. Isso é a marca máxima de uma obra de arte: o retrato exato, simbólico ou metafórico, de seu tempo, um caminho estendido para fazer refletir. E claro, um convite para a ação.

Antes do Incal (Avant l’Incal) — França, 1988 – 1995
Lançamento no Brasil:
Editoria Devir, 2007 – 2008 (3 encadernados, contendo 2 tomos originais, cada um).
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Arte: Zoran Janjetov
Cores: Fred Beltran e Valérie Beltran (apenas nos dois tomos finais)
Capas: José Ladrönn
296 páginas

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