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Crítica | Apenas Mortais

por Luiz Santiago
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A velhice é uma fase muito peculiar de nossas vidas. Trata-se de um momento de colheita daquilo que foi plantado nos anos de juventude e maturidade, e para aqueles que chegam a este momento com boa saúde, também uma fase de soltar-se das muitas responsabilidades e curtir a vida mais livremente. Ocorre que para além dos arranjos sociais e status de cada indivíduo que chega à velhice, há os muitos problemas que esperamos com a idade avançada, muitas vezes tornando a pessoa dependente dos outros ou, como alguns chegam a dizer, “dando trabalho”. É este o cenário de dificuldades na velhice que o diretor Liu Ze nos apresenta em Apenas Mortais.

O espectador se vê em um ambiente muitíssimo bem iluminado, com poucas sombras. A sensação de limpeza e ao mesmo tempo de ausência é intuída a partir da fotografia marcante no filme (que na reta final se encaminha para o lado oposto, mais escuro, especialmente quando estende a mão para uma espécie de realismo mágico e poético) e logo percebe-se uma série de mudanças atravessadas pela família protagonista. A jovem Xian Tian larga o emprego, encerra um caso com um homem e retorna à casa, a fim de cuidar do pai que sofre de Alzheimer.

As relações aqui são estabelecidas através de planos que inicialmente confundem o espectador quanto a intenção dos personagens, seu grau de intimidade e como irão interagir dentro daquela cena, provocando uma constante surpresa no público, como se estivesse descobrindo uma novidade a cada passo… quando na verdade está presenciando o encadeamento orgânico de um enredo. E é assim que o cineasta respeitosamente trabalha com a sensação causada pela doença do patriarca da família, exibindo, igualmente, a passagem dos estágios do Alzheimer e a dificuldade que a mãe, Xian Tian e a irmã encontram nos cuidados, no decorrer dos dias.

A grande diferença de Apenas Mortais para outros filmes que representam o mal de Alzheimer ou qualquer outra doença em pessoas de mais idade é que a vida de cada um segue com seus propósitos, conflitos e particularidades, sem tornar este ou aquele personagem um herói e sem explorar visualmente o doente, transformando-o em um objeto barato de piedade. É verdade que temos momentos emocionantes aqui, mas eles são pormenorizadamente construídos, são o resultado de algo que Liu Ze ergue desde os primeiros minutos e que termina onde todos nós sabemos que irá terminar. A grande surpresa é que o diretor nos reserva algo a mais para o final. Um deslocamento da realidade para o lugar da percepção possivelmente espiritual; do imaginário, do sentimento representado em imagem que não poderia ser menos que um belo enigma.

A fragilidade, a dor e o amor estão de mãos dadas aqui em Apenas Mortais, e o filme não nos poupa de alguns choques ou mesmo da sensação triste da despedida, de “fim de jornada” que se apresenta já no início da fita. É uma obra que nos faz refletir sobre a beleza da vida e também sobre a beleza da morte, que a despeito da dor que traz, acaba dando real sentido à nossa existência. Os caminhos que o diretor toma são sutis, não completamente lineares e com piscadelas para as escolhas que fazemos hoje, podendo marcar fortemente o nosso futuro. Um lembrete para aquilo que somos (apenas mortais), e para o fato de que mesmo inconscientemente, a gente quer mesmo é voltar para casa. Para o local da nossa primeira felicidade.

Apenas Mortais (Being Mortal) – China, 2020
Direção: Liu Ze
Roteiro: Liu Ze, Zhang Weiping
Elenco: Tang Xiaoran, Zhang Hongjing, Li Kunmian, Shi Xiaofei
Duração: 96 min.

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