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Crítica | Apocalipse – O Livro das Revelações de São João

"João teve uma visão, na Ilha de Patmos..."

por Luiz Santiago
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Tenho a impressão de que a minha recepção mais ou menos indiferente em relação a Apocalipse – O Livro das Revelações de São João, escrito por Alfredo Castelli e desenhado por Corrado Roi, para a Bonelli, tenha a ver com a altíssima expectativa que eu acumulei para o livro. Conheço bem o trabalho dos dois criadores do projeto, e por isso mesmo imaginei que a interpretação que dariam para o Livro das Revelações seria… diferente. Na análise mais adiante, tentarei expor em detalhes por que a obra não conseguiu alçar voo, para mim, mas devo dizer que “diferente” é a palavra que eu tinha em mente quanto ao que poderia encontrar nesse quadrinho.

A edição brasileira de 2022, pela Skript Editora, traz 3 excelentes textos de apoio: um prefácio; um pequeno artigo chamado O Otimismo de Zorobabel; e um guia de leitura, familiarizando o leitor com os muitos elementos conceituais e simbólicos do Apocalipse, para que as escolhas dos autores — incluindo aí as muitas mudanças em favor de uma estrutura dramática e uma porção de debatíveis caminhos visuais — fossem melhor compreendidas pelo público. Diferente da soberba adaptação do Gênesis por Robert Crumb, ou da excelente ficcionalização de Aronofsky, Handel e Henrichon para Noé, essa versão da grande casa editorial italiana para o último livro da Bíblia, além de tomar algumas liberdades criativas (só para deixar claro, isso não é nenhum problema!), apresenta três interferências que nos fazem pensar a respeito de sua intenção e papel final na história, deixando-nos sem encontrar motivo sólido algum.

Aproximar-se do Apocalipse, em termos ficcionais ou adaptativos, exige um cuidado especial quanto à escolha de uma “mola narrativa“. Se os artistas escolhem começar racionalizando sobre João, sua estadia em Patmos e o caráter profético ou alucinador de suas visões (exatamente como fazem Castelli e Roi, aqui), há um elemento crítico e metalinguístico que, dependendo de como é apresentado e encerrado, pode minar parte da imersão e sentido das revelações. Aqui, essa perda de vida acontece no começo do quadrinho, que é estruturalmente fraco — a exposição de João numa linha dúbia, entre o louco e o verdadeiramente iluminado, não é tão interessante quanto parece ser na teoria. Ou pelo menos nessa exposição de poucas páginas e um tanto corrida. Já o encerramento, nessa mesma seara de afastamento das visões para olhar a vida e escolhas pessoais do profeta, concentra um peso bem diferente.

Ao brincar com a ideia de que João jogou no mar a explicação para o significado do número da besta (escrito com três digamas, ou seja, ϜϜϜ, cujo valor equivalente em nosso alfabeto é o triplo “w“), os artistas conseguem um grandioso impacto no leitor, finalizando o livro de maneira marcante, abrindo espaço para pesquisas e debates. Infelizmente esse não é o padrão de toda a HQ. Como comentei antes, eu não consigo ver uma verdadeira serventia narrativa nas incursões de personagens históricos sobre o Apocalipse. Temos uma parada com Newton, em 1779; uma segunda com Aleister Crowley e John Symonds, em 1947; e uma última com Borges e Bioy, em 1971. Das três, a única verdadeiramente bem escrita é a conversa entre os dois grandes escritores argentinos, e mesmo assim, seu real papel na representação do Livro das Revelações é nulo, uma vez que a essência da obra é expor as visões de João, não criar uma discussão paralela, teológica, literária, simbólica ou mesmo sobrenatural sobre elas.

Corrado Roi tem momentos visuais que são positivamente perturbadores e que conseguem passar muito bem a angústia e a sensação de “fim dos tempos“. Mas isso é algo mais ou menos localizado. Embora todo o trabalho do artista seja bom, ao longo do livro, ele só se destaca verdadeiramente em algumas cenas. Existem quadros quase vazios em momentos de grande tribulação; desenhos absurdamente ingênuos, como as “estrelas caindo na Terra“; e uma constrangedora falta de imaginação na hora de diagramar a HQ. E aqui, não posso deixar de fazer uma comparação com outro trabalho bíblico. Vejam que o Gêneses é, pelo menos parcialmente, mais parado e mais chato que o Apocalipse. E ao desenhar o Gênesis, Robert Crumb conseguiu nos sustentar o tempo inteiro através de uma arte que valorizava o peso, demonstrava a real importância do texto bíblico através da arte. Numa representação visual para o Apocalipse, penso que o único caminho a ser tomado seria o de uma arte menos etérea, menos esfumaçada, menos parcialmente econômica como a que Corrado Roi optou por fazer.

Embora goste do trabalho estético, como um todo, não creio que esse estilo, finalização e, principalmente, diagramação, tenham sido as escolhas corretas para dar vida à adaptação de um livro com um peso tão grande quanto o Apocalipse. O leitor, porém, terminará a obra com um sorriso cúmplice no rosto (já falei o motivo disso, acima) e irá encontrar um baita artigo/crônica de pesquisa e referências chamado As Imagens das Bestas, escrito por Alfredo Castelli, onde encontrará mais temas de estudo e comparações bíblico-históricas. Este é um quadrinho que poderá acender um bom debate através do material interpretativo que contém, mas diferente de outras obras com o intuito de representar visualmente um livro da Bíblia, ao menos para mim, decepcionou consideravelmente.

Apocalipse – O Livro das Revelações de São João (Apocalisse – Il libro della rivelazione di san Giovanni) — Itália, 14 de novembro de 2019
No Brasil:
Skript Editora, 2022
Roteiro: Alfredo Castelli
Arte: Corrado Roi
Capa: Corrado Roi
112 páginas 

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