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Crítica | Aquarius (2016)

por Luiz Santiago
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Coberto de polêmicas ideológicas desde a exibição inaugural em Cannes, em 17 de maio de 2016, ocasião em que concorria a dois prêmios no Festival (Palma de Ouro e Queer Palm), Aquarius, segundo longa-metragem do pernambucano Kleber Mendonça Filho, chegou aos cinemas brasileiros com igual celeuma. Protestos contra a classificação indicativa para 18 anos (diminuída na tarde de 1º de Setembro de 2016, dia da estreia, para 16 anos — dada a comparação de que filmes bem mais explícitos como Tatuagem e Boi Neon receberam essa classificação) e claras indicações de boicote finalizaram o círculo de muito som ao redor da obra.

Mas colocando de lado o que anda nas ideias dos dois lados da moeda, sobra um filme para assistir. E não há como fugir ou o que fingir do resultado de Aquarius. Kleber Mendonça Filho faz com maestria aqui o que pretendia ter feito em seu longa ficcional de estreia (o bom, mas superestimado e um tantinho desconexo O Som ao Redor), um mosaico de emoções que flertam com o terror, o suspense, as relações humanas em diversos níveis afetivos e de poder — considerando, inclusive, o lado simbólico –; tudo isso cimentado por um roteiro verossímil, crítico, um elenco afinado e uma bela trilha sonora, contendo Ave Sangria, Gilberto Gil, Mateus Alves, Maria Bethânia, Queen, Reginaldo Rossi, Roberto Carlos e Taigurara.

Clara (Sonia Braga, em uma interpretação de tirar o fôlego, ao mesmo tempo intensa e suave) é uma jornalista e crítica de música aposentada que vive no velho Edifício Aquarius, de frente para a Praia de Boa Viagem, em Recife, Pernambuco. É sobre sua luta meio quixotesca contra a especulação imobiliária protagonizada pelo jovem Diego (Humberto Carrão em um excelente personagem passivo-agressivo) que o filme se trata, mas este é apenas um viés do roteiro, também assinado por Mendonça Filho. Nessa linha de visão, o espectador poderá discutir sobre memória familiar e urbana, modernização das cidades, relação nem sempre harmônica entre público e privado e sobre temas existenciais e humanistas que movem cada um a agir com base em suas paixões e desejos, dentro de determinadas circunstâncias.

O filme transita entre espaços sociais diferentes, e sobre eles comenta e tece críticas, mas não há uma linha de abordagem político-ideológica mais marcante, como em Que Horas Ela Volta?, por exemplo. O diretor e roteirista mantém posições bastante óbvias, mas abre o leque de diálogo e não poupa alfinetadas aos seus atores sociais, desde os pequenos engajamentos até o comportamento de instituições, a mais curiosa delas, a imprensa, que sabe muito, filtra muito e pode salvar ou condenar empresários, acusados de corrupção ou dar voz de modernidade a personalidades aposentadas.

As interações afetivas, a liberdade sexual e a forte presença dos núcleos familiares se entrelaçam com o outro lado do texto, e faz isso de maneira tão orgânica que não são necessárias pontes para nenhum dos diferentes blocos, elipses temporais ou sequências da luta de Clara para permanecer no apartamento onde lutou contra um câncer, teve e criou os filhos e perdeu o marido — o formato fluído da montagem e a divisão externa em capítulos ajudaram bastante essa escolha narrativa.

O calor do passado é “ameaçado” por uma outra visão; uma nova forma de olhar um velho edifício e a vontade de colocar algo maior e melhor no lugar, transferindo Clara e sua memória de vida para um apartamento mais confortável em um prédio mais seguro. Os meios escusos que Diego usa para forçar a “senhora de pele um pouco mais escura que lutou muito para chegar onde chegou” a sair do apartamento tem maior impacto na reta final, cuja metáfora do que é “comido de dentro para fora” pode ser aplicada a um grande número de grupos, organizações e relações pessoais, algumas delas retratadas no filme e todas inclusas na observação cínica e muda com a qual ficamos no desfecho.

No país do “você sabe quem eu sou?“, qualquer embate entre quem tem as chaves do castelo e quem não tem, gera um retrato amplamente conhecido e um incômodo que se reflete na vontade de agir sobre a injustiça. Mas nada é simples nesse processo. O grito de realidade da película não está só na verossimilhança dos personagens, na força dos diálogos, no bom uso do silêncio e direção precisa de Kleber Mendonça Filho, realizando um filme difícil de maneira fácil, elegante, e dominando bem os três atos, usando com inteligência a extensa duração da fita, fazendo de Sonia Braga um fio brilhante para amarrar contatos, medo e legado de uma vida. Esse grito é também percebido na representação de uma realidade macro para um micro espaço urbano onde um cano de esgoto separa a parte pobre e rica de uma cidade; onde a gentileza corporativa esbarra na resistência do cliente; onde o progresso e o “bom valor de mercado” conseguem transformar referenciais morais e éticos em desculpas para um “sim” ao final de qualquer proposta.

Aquarius possui um tom humano e Universal, e não é sempre que se vê isso em um filme brasileiro com alguma linha de ordem social e/ou política em seu enredo, tratando, ao mesmo tempo, das muitas formas de envelhecer, da feminilidade, dos pesadelos e pensamentos sobre o Patrimônio Histórico — em definição ampla — diante da intensa e atraente modernidade. O velho, o novo e o vir-a-ser de um imóvel e de algumas vidas são dissecados aqui. No todo, a obra trata de pessoas agindo para defender aquilo que acreditam ser certo. E é isso que faz do filme um dos melhores lançamentos brasileiros dos últimos anos: a tese não suplanta as questões humanas e nem faz desejos comuns mergulharem em um drama de A versus B. O edifício e seu impasse são apenas um princípio. Como sempre, há muito mais acontecendo entre quatro paredes.

Aquarius (Brasil, França, 2016)
Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sonia Braga, Julia Bernat, Humberto Carrão, Barbara Colen, Paula De Renor, Maeve Jinkings, Fábio Leal, Buda Lira, Thaia Perez, Daniel Porpino, Pedro Queiroz, Carla Ribas, Irandhir Santos, Rubens Santos, Fernando Teixeira
Duração: 142 min.

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