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Crítica | Arizona Nunca Mais

por Gabriel Carvalho
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“Meu nome é Smalls. Leonard Smalls. Meus amigos me chamam de Lenny. Só que eu não tenho amigos.” 

Os Irmãos Coen, hoje, são sinônimos de aclamação pelo público e pela crítica. O alvoroço em questão muito se deve à imaginativa, distorcida e bastante simbólica maneira da dupla em contar histórias, implicando tanto charme quanto malícia. Mesmo em suas obras mais sombrias, percebemos, com considerável facilidade, uma subversão narrativa, mas é nas comédias que os irmãos deturpam totalmente as convenções cinematográficas de storytelling, levando sua criações para caminhos inimagináveis. Embora Gosto de Sangue seja o primeiro filme, de fato, dos dois, Arizona Nunca Mais é o verdadeiro – e histérico – pontapé inicial para uma futura consagração em realizações como O Grande Lebowski e Fargo. Ao levar Hi McDunnong (Nicolas Cage), um assaltante reincidente, a se apaixonar pela policial Edwina (Holly Hunter), presente em sua prisão, os irmãos trazem o nonsense, em seu estado mais honesto possível, para as telas – primeiro, o amor improvável. Em seguida, por não poder ter filhos, Edwina convence Hi a roubar e cuidar, como se fosse deles, um dos “Quíntuplos de Arizona”, filhos recém-nascidos do famoso magnata de imóveis Nathan Arizona (Trey Wilson). O espaço está montado para uma das maiores aloprações possíveis, diante de um cenário já demasiadamente aloprado. Arizona Nunca Mais desconhece o significado de limites.

Dessa trama inventiva, o roteiro dos Coen vai aos poucos evoluindo em desenvolvimento o conflito do casal. Já na figura de um caçador de recompensas, Leonard Smalls (Randall “Tex” Cobbs), o enredo ganha, consequentemente, sua forma mais desproporcional com a até singela premissa inicial. As narrações, ritmadas por um dos personagens mais carismáticos de Nicolas Cage, moldam a base de uma história, que décadas depois, tornaria-se cult. O protagonista dessa farsa é um dos personagens mais aprazíveis já criados pelos irmãos Coen, porque, além do texto aguçado, a fisicalidade interpretativa de Nicolas Cage assegura a sua posição como um dos heróis-bandido mais ingênuos e engraçados da comédia. Além disso, a idiossincrasia traz para os personagens apresentados comportamentos excêntricos e temperamentos peculiares, que, se talvez excessivamente repetidos durante o longa, ainda assim transpõem a nada coerente história para um absurdo cômico de megalomaníaca dimensão. Pode ser que o filme não provoque, no geral, as gargalhadas mais incessantes. Ou então provoquem. O resultado do humor está nas piadas de situação, contextualizadas dentro de cenários estapafúrdios. O filme se entende. A piada está intrínseca na experiência, sem necessidade de ser exprimida em bordões, referências ou verbalizações.

Com um objetivo distinto, a policial, diferentemente do protagonista, é a potência dramática do longa. As expressões faciais da atriz, mais atreladas à realidade, contrastam com a excentricidade dos personagens a sua volta, que são, em suma, personalidades nada convencionais. Não que a personagem não seja bizarra. Ela é. Afinal, embora a dor da esterilidade seja pesada e angustiante – ainda mais para um casal que, em 10 minutos em tela e em posições descabidamente desfavoráveis, garantem uma química gigante -, a decisão da mulher é, no mínimo, doentia. Acrescente isso a uma repetida justaposição de fatos e justificativas enormemente implausíveis, além de um amor instantâneo da mulher por Nathan Jr., e temos uma personagem multidimensional, mas, ainda assim, confortavelmente inacreditável. Os escopos de trabalho dos irmãos, mesmo com a loucura desenfreada, nunca caminham para uma repulsa do público pela obra. Os diálogos, afiadíssimos, e as cenas, todas icônicas, são, em uma visão final, uma amálgama de acertos. A fuga da prisão de Gale Snoats (John Goodman) e Evelle Snoats (William Forsythe), por exemplo, saindo da lama como zumbis, satirizando filmes clássicos do gênero, é impagável. Os dois personagens, aliás, são peças fundamentais para a manutenção do tom espalhafatoso na relação do crime com a piada.

Ademais, a sequência de perseguição policial, após o personagem principal roubar um pacote de fraldas – notem a intensidade dessa atitude, com o homem tomando tal medida para garantir a integridade de seu filho – é espetacular. Apesar do contexto duro, a necessidade de roubar para sustentar uma criança, tudo se transforma em uma absurda alegoria jocosa. A loucura, de repente, se instaura. Pessoas começam a atirar indevidamente, como se o personagem estivesse cometendo um crime mórbido, enquanto cachorros se unem à perseguição. Sem falar na trilha sonora, agraciada por Carter Burwell, imprimindo composições remetentes aos faroestes e, desse modo, transformando uma simples fuga em uma épica maratona. A inserção da figura antagônica de um caçador de recompensas, o motoqueiro Leonard Smalls, mais adiante, também não poderia ser mais acertada. Um arquétipo de futuros distópicos, mas no mundo contemporâneo, auto-contratando-se. Armado até os dentes, com granadas e escopetas, Leonard passa pelas cidades explodindo o que puder. Os foreshadowings nos sonhos de Hi alteiam tanto a magnitude de sua presença, que, quando o profético duelo chega, estamos verdadeiramente preocupados com o destino do nosso herói. Com direito a falsos sons de tapas e socos, apenas um poderá sair vivo desse confronto.

Já o final, apesar de todos os acertos, é, infelizmente e surpreendentemente, piegas – embora o voice-over de Cage funcione. O roteiro, por outro lado, definitivamente não acerta em nada com a introdução do casal Glen (Sam McMurray) e Dot (Frances McDormand). Depois da chegada de Nathan Jr., Ed convida o casal – composto pelo chefe de seu marido, sua esposa e seus filhos odiáveis – para conheceram o bebê. Enquanto Hi e Ed permanecem inseridos no sonho americano, o resto da sequência destoa completamente. As crianças irritantes são um clichê mal-utilizado, e a inscrição ascosa, feita por uma dessas figuras na parede da casa dos protagonistas, é um ponto fora da curva. A excelente fotografia de Barry Sonnenfeld, em contrapartida positiva, consegue alinhar os bebês dentro de quadros precisos, vide a clássica imagem de Nathan Jr. na cadeirinha, esperando pela chegada daqueles que deixaram-o só. Arizona Nunca Mais, portanto, é o filme mais inverossimilhante dos irmãos Coen, com os personagens menos críveis e as situações mais surrealistas possíveis. Um filme com alma e senso humorístico apuradíssimo. Personagens inesquecíveis são mais uma das tantas qualidades dessa obra cheia de piadas irreverentes. A proposta pode até ter sido aperfeiçoada em obras posteriores de Joel e Ethan Coen, mas a importância deste pontapé inicial continua inabalável.

Arizona Nunca Mais (Raising Arizona) — EUA, 1987
Direção:
 Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen
Elenco: Nicolas Cage, Holly Hunter, Randall “Text” Cobbs, John Goodman, William Forsythe, Trey Wilson, Sam McMurray, Frances McDormand
Duração: 92 min.

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