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Crítica | “As Aparências Enganam” – Ney Matogrosso & Aquarela Carioca

O fino do fino!

por Iago Iastrov
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O amadurecimento de um artista raramente segue caminhos previsíveis. No caso de Ney Matogrosso, a década de 1990 representou um período de recalibração estética que culminou neste primoroso As Aparências Enganam, lançado em 1993 pela Polygram/Philips. O álbum fez parte da natural evolução de refinamento interpretativo já demonstrado pelo cantor em À Flor da Pele (1991), onde a parceria com Rafael Rabello havia estabelecido novos parâmetros de despojamento e precisão técnica num projeto de voz e violão. Se aquele trabalho explorara a intimidade pela economia máxima de meios, este novo disco expandia as possibilidades sonoras através da sofisticação instrumental do grupo Aquarela Carioca, quinteto de formação híbrida que ofereceria o suporte ideal para uma experimentação mais ampla, sem perder a essência musical conquistada anteriormente.

O título brinca com a noção de “mudar e permanecer”, fazendo uma síntese das reinvenções do próprio Ney Matogrosso. Para um intérprete que desde os tempos dos Secos & Molhados havia feito da transformação visual e performática sua grande marca, escolher esse título representava mais que uma provocação: era uma declaração de concepções estéticas em constante fervura. Este álbum propunha investigar justamente os territórios onde rosto e máscara; farsa e autenticidade se diluíam. A concepção visual, assinada pelo próprio cantor, nos faz ver essa inquietação. Já a produção nos estúdios da Impressão Digital (RJ), sob comando de Mazzola e direção artística de Max Pierre, seguida pela mixagem no Saturn Studios, em Burbank (Califórnia), e masterização de Bernie Grundman, conferiu ao projeto um acabamento técnico de padrão internacional que sustentaria bem a barra da experimentação pretendida.

Quem acompanha Ney neste projeto é o grupo Aquarela Carioca, formado em 1988 por músicos que passeavam pelo samba, jazz, música erudita e o rock brasileiro. Paulo Brandão, Lui Coimbra, Mário Sève, Paulo Muylaert e Marcos Suzano desenvolvem uma sonoridade complexa e lírica, capaz de sustentar uma performance vocal como a de Ney sem diluí-la nem competir com ela. A primeira aproximação entre o cantor e o grupo aconteceu em 1991, com a faixa Malmequer, do álbum Contos, e a sintonia estabelecida ali se tornaria, em As Aparências Enganam, uma empreitada madura, revelada no cuidado com os arranjos, no escrúpulo das escolhas interpretativas e na arquitetura acústica que permite à voz de Ney e aos instrumentos da banda soarem com naturalidade e em perfeita sintonia.

Notícias do Brasil abre o disco com economia precisa que antecipa a estética geral da obra. A interpretação dispensa floreios e prioriza a entrega da poesia. FM Rebeldia mergulha em sonoridade experimental, com sopros recortados e efeitos eletrônicos suaves moldando o ambiente. A performance vocal está entre transmissão radiofônica e expressão teatral, sugerindo comentário crítico sobre o sistema comunicacional e sua potência como ferramenta artística e política. A Tua Presença Morena revela uma faceta sensual onde a voz de Ney assume contornos melódicos, conversando com os elementos harmônicos da banda. O cello de Lui Coimbra cria texturas que aumentam a dimensão da canção, enquanto a percussão de Marcos Suzano dá a pulsação que sublinha tudo.

Uma das minhas faixas favoritas do disco, O Ciúme, traz densidade dramática, utilizando pausas e respirações como elementos expressivos fundamentais. A voz transforma cada verso em experiência emocional direta, com uma força capaz de arrancar lágrimas. A releitura de Sangue Latino é um momento de particular significado biográfico, reconectando Ney com o passado, sem recorrer à nostalgia fácil. A Aquarela Carioca redesenha completamente o instrumental original, criando uma atmosfera fluída onde sopros delicados e harmonias expandidas trazem nova cara à canção. Fruta Boa desenvolve caráter ritualístico através de percussão elaborada e melodias que se estendem além das convenções métricas tradicionais, criando espaço temporal dilatado onde a voz pode exercitar registros variados.

Las Muchachas de Copacabana incorpora elementos do jazz contemporâneo para comentar satiricamente sobre arquétipos urbanos cariocas. Ney encarna personagens com ironia controlada, enquanto os músicos subvertem expectativas através de dissonâncias estrategicamente posicionadas. A sobreposição de El Manisero, uma rumba com fragmento incidental de Baby (Caetano), cria uma zona de ambiguidade que se funde ao conceito do álbum, beirando fronteiras entre autenticidade e apropriação. Pavão Mysterioso explora a metamorfose simbólica por uma interpretação que combina lirismo e tensão. A voz constrói uma trajetória ascendente, sustentada pela percussão coreográfica, criando diálogo entre som e gesto. Cheiro de Saudade é o momento de recolhimento melódico, uma balada com silêncios eloquentes e fraseado que privilegia a contemplação sobre a demonstração. Pedra de Rio se torna o canal para exploração tímbrica com uma fluidez leve e instrumentos criando correntes sonoras que espelham o movimento natural das águas.

Vendedor de Bananas é um samba que assume a teatralidade, transformando um trabalhador urbano em personagem, sustentado por instrumentação que simula movimento e burburinho da cidade. A construção vocal de Ney evita a caricatura, dignificando o retrato social de forma natural, engraçada e magnética. A maravilhosa Cirandas (que é um medley) funciona como reunião final do projeto, apresentando seis partes que resgatam estruturas populares tradicionais numa leitura contemporânea. A banda costura os segmentos com invenção respeitosa, permitindo que Ney atue como mediador entre tradição e inovação. As Aparências Enganam, maravilhosa faixa-título que encerra o álbum, tira as ornamentações para reapresentar a essência de tudo: interpretação com sobriedade técnica e força expressiva sustentada por acompanhamento de altíssima qualidade.

As Aparências Enganam é uma obra-prima da discografia de Ney Matogrosso, erguida com precisão interpretativa e coerência estética. A parceria com a Aquarela Carioca é o grande alicerce dessa jornada sonora, oferecendo a criação instrumental ideal para o que se pretende aqui: construir um repertório interpretativo que fosse diferente, que não fugisse das raízes brasileiras, mas que pudesse se projetar por nuances internacionais e também abraçar o novo. Ao longo das faixas, o disco comprova que a maturidade não exige abandonar o risco, mas sim refinar a ousadia criativa, às vezes, com novos parceiros. O título, nesse ponto, é extremamente preciso, comprovando que as aparências, de fato, enganam.

Aumenta!: Cirandas
Diminui!: 

As Aparências Enganam
Artista: Ney Matogrosso & Aquarela Carioca
País: Brasil
Lançamento: 1993
Gravadora: Polygram
Estilo: MPB
Duração: 61 min.

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