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Crítica | As Boas Maneiras

por Gabriel Carvalho
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“Dorme no chão, dorme no feno, dorme cavalinho, aproveita que é pequeno.”

A vida possui diversos pontos de virada, que drasticamente mudam a nossa realidade como, até então, a conhecíamos. Neste longa-metragem de Juliana Rojas e Marco Dutra, o amor é uma constante dos dois filmes, consideravelmente distintos, que moldam As Boas Maneiras como o excelente exemplar de cinema de gênero que é. A ruptura entre um filme e o outro, acontecimentos que destroem e então reconstroem, define este ponto de virada. O maior apreço do trabalho do roteiro, todavia, não é nem com o amor, mas com a liberdade em si, entrelaçada com a narrativa e composta em camadas de variadas nuances, seja a liberdade por escolher, seja a liberdade por não se ater à moral da sociedade. As Boas Maneiras, desse modo, é bastante contrário ao caráter fabular das narrativas, embora este seja apresentado de diversas formas na estrutura da obra, seja na composição visual da abertura, seja em falas que remetem a histórias clássicas da literatura. No filme – cuja trama, primeiramente, nos apresenta à Clara (Isabél Zuaa), contratada para ajudar Ana (Marjorie Estiano), uma mulher grávida, nos serviços de casa e, futuramente, nos cuidados com o bebê -, as etiquetas sociais são subvertidas. Diante de um trabalho que mapeia tantas disfunções com a ordem vigente, um dos maiores sucessos da dupla é conduzir uma visão que torna o espectador empático aos personagens, não os entendendo como imorais, mas, dentro das características que abraçam um alcance ético, observando-os em sua amoralidade, algo absurdamente livre, porém inalcançável. A visão sobre a maternidade, no final das contas, é uma das mais libertadoras e poéticas do cinema brasileiro.

O distanciamento das boas maneiras, impostas ferozmente por uma sociedade que justificará o comportamento agressivo, o linchamento humano, na desarticulação, por outros, da moral vigente, é acompanhado do crescimento gradativo da tensão propriamente dita, amplificada pelas dicas dadas, durante o filme, acerca das condições da gravidez de Ana, sendo a natureza aterrorizante um pretexto para algo maior, como George Romero fizera em A Noite dos Mortos-Vivos, de 1968. O cinema de gênero, com isso, permanece presente em toda a sua glória – a veia central para que acompanhemos uma história sobre licantropia, maternidade e liberdade. Até mesmo presenciamos, por sinal, um inacreditável momento de violência gráfica, extremamente perturbador. O gosto elitista é dissolvido ao passo que a primeira parte da obra é requintada, mais soturna, romântica, abordando um amor livre e um mistério proibido. A naturalidade da relação entre as duas mulheres é impressionante. Já na segunda parte, a obra ganha um escopo escolar, sobre bullying, leves interesses amorosos de colégio e amizades despretensiosas, adentrando o popular. Os assuntos menores tratados são escanteados, mas a relação humana entre as figuras centrais permanece vigorosa, com o roteiro tendo novas coisas a apontar. A quebra imensa de tom pode prejudicar a experiência de alguns espectadores, saudosos da excelentíssima primeira parte do longa, porém, dentre tantos fatores, é inegável como torna-se comovente a transposição de uma história para outra, sabendo usar de características desenvolvidas pelo filme – no caso, o gosto de Ana por dança – para pegar o espectador, talvez emocionando-o assustadoramente.

A metrópole de As Boas Maneiras é distinta, levemente futurista, além de solitária, no entanto, remetendo a muitas das mazelas sociais da nossa realidade, embora nunca as denuncie obviamente, sem entregá-las de bandeja ao espectador, algo comum de ser feito através de um texto expositivo. Algumas notas, de fato, precisam tomadas do corpo geral, começando com as que se apresentam na superfície da obra, mais pertinente a uma tangibilidade primeira. Clara é negra, enquanto Ana é branca. Clara é babá – e também empregada doméstica -, enquanto Ana é patroa. As Boas Maneiras, entretanto, não que quer falar diretamente sobre esses temas, sendo que as críticas relacionadas ao racismo e a desigualdade, portanto, estão em segundo plano de, acima de tudo, um belíssimo texto discursivo sobre liberdade. As costuras, contudo, são evidentes, ao passo que nenhuma dessas características – cor de pele, condição financeira – são apresentadas como barreiras para as protagonistas, desenvolvendo uma história de amor sem pieguices, extremamente verdadeira. Marjorie Estiano, no relacionamento, expressa abertamente os seus sentimentos, ao passo que Isabél Zuaa incorpora a sua personagem de uma maneira apática, quase robótica, como se estivesse presa em um quarto à beira da isenção de sentimentos. A posterior mudança evidencia um arco dramático para a protagonista. A ácida relação é transformada completamente na segunda parte da obra, possuindo conexões renovadas, ainda assim interessadas nas brechas, na capacidade do normal tornar-se caos, ser completamente redefinido. A histeria coletiva, dos últimos segundos, é um misto de fanatismo religioso com moralismo hipócrita.

O cinema de Juliana Rojas e Marco Dutra também não está interessado em amarras. O cinema é livre. Justamente nessa opção pela liberdade que ambos os cineastas decidem entregar uma segunda parte mais formal, seguindo diversas das convenções adotadas por obras de natureza similar, como, por exemplo, a criança revoltada com a educação materna – o clichê como reforço narrativo e não muleta narrativa. As convenções, aqui, não são facilidades, muito menos aprisionamentos criativos, contudo, escolhas conscientes. São tão intencionais as decisões que, em momentos específicos, As Boas Maneiras é permitido – destituindo o gênero como necessidade a ser pautada assiduamente – ser musical, acompanhado por canções belíssimas, até mesmo “animação”, em uma maneira inventiva de se expor o passado. Além disso, o longa-metragem, esteticamente, opta por contrastes entre o que é natural e o que é artificial, como na cirúrgica intervenção digital das paisagens, que expressam o dedo do homem, nos fazendo notá-lo, mas nunca nos fazendo criticá-lo, visto que o casamento entre a lua e a fotografia, a exemplo, retrata uma ótica singular, sem ser realista. A mesma coisa acontece com a computação gráfica utilizada na criação da criatura, eficientíssima mediante a contraposição, embora uma maquiagem pudesse providenciar um enriquecimento ao trabalho artístico sobre sua forma crescida, porque a recém-nascida possui um esmero magnífico. Miguel Lobo, o ator-mirim de maior relevância, apesar disso, se destaca, mesmo sendo parte de um elenco infantil mal dirigido pelos cineastas. A montagem, em contrapartida, é apreciável, em um conjunto que costura planos com planos quase artesanalmente.

As Boas Maneiras, em pensamentos conclusivos sobre suas perspectivas, as humanas e as selvagens, é uma obra que exala comentários sobre a vida urbana, sobre a desigualdade e, mais do que tudo, sobre como devemos ou não nos comportar. Se devemos ou não nos comportar. Grades para prender os personagens do filme, correntes ou quartinhos, não existem, são desfeitas e o homem, consequentemente, volta ao seu estado primitivo, mas livre. O surgimento do moralismo hipócrita, nesse mesmo tempo, daquelas pessoas que julgam o deslocamento, no entanto, urgem por exteriorizar um ódio repelido, internalizado, porém presente, é evidenciado derradeiramente – o retorno a um estado medieval, mas duramente distanciado de qualquer liberdade. A intitulação, aliás, promove um casamento certeiro seu com a temática abordada nas duas horas de projeção, dada a introdução de inúmeras pontuações, da etiqueta à homossexualidade, que fogem completamente das boas maneiras de uma sociedade composta pelos chamados “cidadãos de bem, parte da família tradicional brasileira“. O exagero do final está, assustadoramente, mais perto de uma verossimilhança do que pensamos. A tradição cultural também é abordada, seja por inventivos flashbacks,  que dizem mais pelas imagens do que pela narração, seja pela ambientação da segunda parte da obra, passada nas vésperas de uma festa junina, uma das celebrações mais icônicas do país. As tradições e as tradições. A fuga dos padrões, da vida dita como correta, é uma constante entre todos os personagens do longa-metragem, desde o princípio, em níveis e níveis que vão se distanciando, mantendo, na ruptura, entretanto, um uníssono rugido por liberdade.

As Boas Maneiras – Brasil, 2017
Direção: Juliana Rojas, Marco Dura
Roteiro: Marco Dutra, Juliana Rojas
Elenco: Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo, Cida Moreira, Andréa Marquee, Felipe Kenji,  Nina Medeiros, Neusa Velasco, Gilda Nomacce, Eduardo Gomes, Germano Melo, Adriana Mendonça, Naloana Lima, Hugo Villavicenzio
Duração: 130 min.

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