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Crítica | As Estátuas Também Morrem

por Luiz Santiago
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Desde os ventos que sopraram na Europa nos anos após a Idade Média Central, o comércio de raridades e o valor cada vez mais crescente de “objetos das culturas exóticas” fez com que a classe dos mercadores passasse a catalogar, institucionalizar e cotar preços e valores culturais para criações de povos dos cantos mais remotos do mundo. Mesmo a Igreja com suas relíquias seguia uma tendência de valorização dos objetos (nesse caso, “santos”) de um passado distante ou de longínquas províncias do antigo Império Romano, ruínas dos primórdios do cristianismo.

Com as explorações marítimas do final do século XV, três continentes tornaram-se fornecedores de curiosidades para o “mercado da cultura selvagem”: América, África e Ásia; e dessa tríade, a África se destacou no século XVI como também fornecedora de mão de obra escrava, e com o tempo, de matérias-primas, diamantes e terras para engrandecer os impérios do Velho Continente. O processo de exploração do Continente-Mãe, no entanto, tende a ser estudado por um único prisma, o da escravidão, mas há uma infinidade de questões a ele relacionadas, que se perderam mesmo da memória dos historiadores, e são praticamente desconhecidas da população comum. Uma dessas questões é a exposição que a burguesia colonialista fez e faz da cultura africana (também) como exotismo digno de apreciação das massas, e esse tema é abordado de forma primorosa no documentário As estátuas também morrem (1953), dirigido por Chris Marker (em seu segundo filme) e Alain Resnais.

O média-metragem foca as sociedades africanas a partir de sua produção de identidade própria, suas variedades de máscaras, rituais, modos de vida e meios de produção, ao passo que somos apresentados à visão capitalista do continente, que tem seu ponto máximo no momento em que os afrodescendentes só conseguem ter contato com sua cultura ancestral através da vitrine de um museu. Para os cineastas, as estátuas produzidas por essas sociedades morrem no dia em que são catalogadas e expostas à visitação, fora de seu contexto histórico original, tornando-se objeto de comércio e convenções artísticas, cobiça de Estados e curadores de diversas instituições. As estátuas morrem quando perdem o seu significado sagrado de criação e transforma-se em peça “desconhecida” ou “anônima” nas placas esmaltadas de identificação.

Marker e Resnais partem do inanimado, das estátuas abandonadas, ruínas de uma história a que só se pode imaginar o conteúdo pela falta de outros indícios de sua existência. Desses fotogramas praticamente imóveis, a voz indiscreta de um narrador crítico nos apresenta a situação inicial: o abandono da arte e o resgate feito pelos museus, uma iniciativa nobre sob as bases repudiáveis da exploração. Mas uma ponte histórica é construída, e somos levados ao passado a fim de percorrermos uma linha do tempo em análise mais detalhada. Peças de Ifé, do Mali, rituais nagô, obras de Gana, Etiópia, Chade, resquícios dos reinos cristãos da Núbia, comunidades do litoral do Oceano Índico, região dos Grandes Lagos e Chade, do Baixo Zaire, Angola e Benin, um amplo resgate artístico e histórico (contidos em 30 minutos de filme) se faz diante dos nossos olhos. A demonização do negro (expiação dos pecados do branco), a selvageria territorial do continente africano, o sincretismo compassado ou imposto violentamente, a apropriação criminosa da cultura alheia, tudo isso se discute rapidamente sem responder absolutamente nada – a verdade absoluta não faz parte de um documentário dessa estirpe.

O conteúdo das imagens alternam-se entre fotogramas e panorâmicas geográficas sobre grandes extensões de terra. Animações feitas com mapas antigos do continente, peças destacadas em zoom dramático em direção ao espectador, primeiríssimos planos em máscaras, olhos, pilões, teares, uma variedade muito dinâmica de linguagens fílmicas é usada no decorrer do documentário, que não deseja ser uma opinião definitiva, deixando abertos os diversos caminhos para desvios de pensamento daquele que assiste. Além disso, há um certo “quê” de visão romântica, de “legenda rosa” sobre os fatos abordados, o que entrega ainda mais a construção e recorte antropológico dos realizadores.

Contudo, o caminho das pedras segue o rumo da morte da identidade negra. Chegamos à passagem do século XIX para o XX. Estudos realizados mostram comparações absurdas e anacrônicas com os materiais encontrados em sítios arqueológicos; enxergam deuses assírios, feições hindus e chinesas, o Cristo romano e o atleta grego em peças do Sael africano. Ah, a obsessão burguesa em dar rótulos a tudo quanto existe! E dessas disparidades acadêmicas, chegamos às disparidades atuais. O negro-escravo dá lugar ao negro-fantoche-fetiche: o desempenho dos atletas negros nas Olimpíadas, o jazz, o boxe, os líderes políticos e revolucionários abaixo do Saara, todos se tornaram parte de um espetáculo que mixa complacência e incompreensão.

A manipulação de documentários antigos e vídeos amadores, a fusão de imagens, a construção do próprio espetáculo da crítica e a posição política dos realizadores antecedem aquilo que a “onda-verdade” dos documentários pregaria nos anos 60; e claro, a oposição com o cinema-direto americano é evidente. Marker e Resnais brincam com as imagens, fazem a sua versão da história, interferem na linha dos fatos e dramatizam com a música de Guy Bernard. Não só pela riqueza do que traz, mas pela não cristalização da verdade, As estátuas também morrem é obra obrigatória para os que buscam no cinema a semente das versões da história e da crítica dentro da herança deixada pelos irmãos Lumière.

As Estátuas Também Morrem (Les statues meurent aussi) – França, 1953
Direção: 
Chris Marker, Alain Resnais
Roteiro: Chris Marker
Elenco: Jean Négroni (narrador)

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