Home FilmesCríticas Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 1 – O Inquieto

Crítica | As Mil e Uma Noites: Volume 1 – O Inquieto

por Luiz Santiago
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…No qual Xerazade dá conta das inquietantes maldições que se abatem sobre o país:

Oh venturoso Rei, fui sabedora de que num triste país entre os países, onde se sonha com sereias e baleias, o desemprego propaga-se. Em certos lugares, a floresta arde noite dentro apesar da chuva que cai; homens e mulheres anseiam por lançarem-se ao mar em pleno Inverno. Por vezes, há animais que falam embora seja improvável que os escutem. Neste país onde as coisas não são o que aparentam ser, os homens do poder passeiam em camelos e escondem uma permanente e vergonhosa ereção; aguardam pelo momento da coleta de impostos para poderem pagar a um certo feiticeiro que…”.

…E vendo despontar a manhã, Xerazade calou-se. É sob esta premissa que Miguel Gomes, diretor do também excelente Tabu (2012) inicia a sua forma bastante particular de rever os contos das Mil e Uma Noites. Neste primeiro volume de três, temos uma introdução conceitual — mas nada didática — para o projeto como um todo e através dela descobrimos que o diretor “roubou” dos contos de Xerazade a beleza, a ação fantástica e o impossível, mas que os filmes dessa trilogia não são uma adaptação dos contos, eles apenas se utilizam da estrutura bastante conhecida para mostrar de maneira muito irônica, cínica e consciente a crise econômica e política de Portugal em um período de tempo que vai de agosto de 2013 a julho de 2014. Os filmes foram concebidos apenas como uma trilogia na mesa de edição e o diretor aproveitou a oportunidade para brincar com o cinema blockbuster e dar nomes curiosos, “à la Star Wars” a cada um dos três longas.

Cada uma das obras dessas Mil e Uma Noites de Miguel Gomes são independentes entre si, mas eu indico fortemente que o leitor e espectador as veja na ordem, e explico por quê: neste primeiro volume existe a base conceitual para a trama da trilogia e a mistura de todos os ingredientes essenciais que serão vistos aqui e nos longas seguintes, O Desolado e O Encantado. Essas características se mostram a partir de seu núcleo, em uma forma metalinguística e documental, e deste diálogo da obra com o público é que a realidade se alia à ficção, surgindo o mote de As Mil e Uma Noites e o curioso caminho seguido pelo diretor para nos contar três histórias: Os Homens de Pau-Feito, A História do Galo e do Fogo e O Banho dos Magníficos.

A passagem de uma confissão realista para o drama burlesco e a ficção cômica nos contos seguintes dão ao espectador uma ideia precisa do que é este O Inquieto e antecede o padrão dos outros episódios, tendo os contos das extremidades maior tendência ao real, social e aos laços humanos, enquanto o conto do meio tende a ser mais simbólico, mais metafórico e até lírico que os demais, especialmente o conto da juíza, no Volume 2. Os temas desta abertura são tanto econômicos quanto políticos e depois de o cineasta nos apresentar a proposta, caminhamos por uma longa trilha de negociações com o FMI e outras centrais econômicas; por uma inteligente metáfora aos crimes cometidos contra a propriedade e, no desfecho, nos deparamos com o confronto de alguns indivíduos com o desemprego: os magníficos (pelos seus relatos) que aceitam participar de um determinado ritual, o banho de mar no dia 1º de janeiro de 2014, para garantir que o novo ano fosse melhor que o anterior.

Com grande maestria na concepção e direção de cada segmento — que embora não se distingam enormemente pela fotografia possuem ritmo de montagem, trilha sonora, roteiro e direção de arte contrastantes — Miguel Gomes vai aos poucos nos cercando por tudo aquilo que causou furor na sociedade portuguesa deste período que os três filmes aborda. A inquietude, de fato, surge nas manifestações do próprio Gomes ao início do filme; nas passeatas dos estaleiros; na procura pelo extermínio das vespas asiáticas; na busca por um ajuste monetário, por justiça e liberdade de expressão; por amor e por um lugar no mercado de trabalho. E em cada um desses momentos temos subtemas em andamento, o que dá uma unidade invisível ao filme, inteiramente passado em um ‘país amaldiçoado’, cujo passado glorioso parece ter se perdido na História.

Entre a caricatura e a denúncia em vários tons, Miguel Gomes nos entrega parte da situação vivida por Portugal, mas deixa claro que esta visão, mesmo partindo de um ponto real, está coberta por uma linguagem que cria, desconstrói e sugere ficções; uma linguagem que incita o pensamento do público e faz com que ele ria da miséria de uma nação para depois se emocionar com alguns micro-dramas, terminando com um banho de esperança ao qual todos naquela nação, fictícia ou não, se agarram, almejando que as coisas melhorem expressivamente.

É o cinema falando aos ouvidos de quem quer ouvir sobre o que incomoda a muitos e sobre o que a maioria se contenta em reclamar uns com os outros e em redes sociais ao invés de agir, de alguma forma, sobre essa realidade. A inquietude dita no título e adotada como mote deste episódio é mais um chamado à ação do que uma declaração de incômodo de um inquieto qualquer. O tempo de contentar-se com pouco chegou ao fim.

As Mil e Uma Noites: Volume 1 – O Inquieto (Portugal, França, Alemanha, Suíça, 2015)
Direção: Miguel Gomes
Roteiro: Telmo Churro, Miguel Gomes, Mariana Ricardo
Elenco: Miguel Gomes, Carloto Cotta, Crista Alfaiate, Adriano Luz, Rogério Samora, Diogo Dória, Luísa Cruz, Maria Rueff, Dinarte Branco, Bruno Bravo, Chico Chapas, Cristina Carvalhal, Américo Silva, Basirou Diallo
Duração: 125 min.

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