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Crítica | As Ondas (2019)

Trabalhando as múltiplas faces do gênero dramático.

por Fernando JG
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O que Trey Edward Shults faz em As Ondas é quase inominável. É algo muito próximo a uma experiência. Seu filme precisa ser experimentado, não apenas assistido. É este um drama que faz jus ao seu nome, sendo imersivo e denso como ondas, mergulhando seus personagens em situações limítrofes e, como correntes de retorno, nos carregam junto para dentro de um oceano inundado de cargas emocionais extremas. Esta é a sua proposta central. 

Ficamos devastados até os últimos instantes do longa-metragem, mas não o bastante a ponto do cineasta esquecer de tocar True Love Waits do Radiohead, naquele tom característico de um Thom Yorke que canta como se imprimisse nas suas cordas vocais as impressões mais sinceras do seu coração despedaçado. O diretor e roteirista, com isso, unifica o filme e confere, com muito apego à forma, coesão estética à toda linha narrativa enquanto trabalha os mais distintos aspectos cinematográficos que compõem o todo dinâmico de Waves. O resultado disso é um grande fetiche em provocar um persistente complexo melancólico como efeito fílmico. 

Narrando sobre um círculo familiar que parecia perfeito, a obra concentra-se em dissecar os personagens de uma família e suas reações após uma tragédia, evidenciando as soluções pessoais tomadas por cada um após atravessarem por um imenso luto de perda dupla. Sem pressa para que o roteiro finalize, o cineasta visita personagem por personagem, sondando-os de modo ingênuo e sentimental, tentando lê-los e identificar a maneira como superam o luto e retrabalham a ideia de amor. O tema da família torna-se um núcleo central na reflexão fílmica. 

Declaradamente inspirado por um dos cineastas mais essenciais e encantados do cinema, Wong Kar-Wai (2046 – Os Segredos do Amor), Edward Shults, que fez o atmosférico Ao Cair da Noite, trabalha numa peça fílmica muito autoral, com um ritmo singular e unificado, estabelecendo equilíbrio num enredo conduzido por uma espécie de lirismo trágico. Sua película divide-se basicamente em dois atos que podem ser analisados de maneira separada devido à autonomia conferida em cada um deles. O primeiro desenvolve o drama de Tyler (Kelvin Harrison Jr), um personagem complexo, apaixonado e impulsivo. O segundo ato, após um problema central que separa a narrativa em duas partes, desenvolve sua irmã, Emilly (Alexa Demie), e como ela lida com a peripécia gerada ao fim do primeiro ato. A atuação de Harrison como Tyler é soberba; ele transmite tudo o que sente com verdadeira sinceridade e não tenho um único contraponto a respeito da sua presença diante da tela. 

A câmera tem uma proposta única de movimentação, como se estivesse numa superfície de algo em constante movimento, gerando um dinamismo ímpar dentro da mise-en-scène, o que conclui uma execução de enredo também muito singular, com giros em 360º e planos-sequência enternecedores. A ideia da filmagem dinâmica, quando inserida num roteiro de feição moderna a respeito de temas como amor e descoberta, provoca um caráter onírico na semântica fílmica. Waves é um sonho lírico em imagens plenas. 

Tudo aqui é sobre amor em suas mais distintas manifestações. Mata-se por amor e o perdão também se dá através dele. Há a presença invisível de um Eros emotivo que age manipulando toda a atmosfera do filme, envenenando todas as motivações e suas conclusões. O amor, quando não é lírico, é trágico. Embora experimental e sensorial, há um apego forte à tradição clássica, uma vez que a película estrutura-se a partir de um coming of age – por isso, temáticas tão presentes no subgênero como ruptura, amor, medo e perda encontram aqui um ambiente de movimentação e desenvolvimento impecáveis. 

O enredo tem um movimento de queda livre e logo após a peripécia a estrutura desaba com todos. Todas as histórias deságuam em pura melancolia impulsionada pela perda objetal. Adquire-se, então, uma característica de urgência. O cineasta introduz uma fome de afeto em seus personagens, sobretudo na sua heroína, Emilly, que trabalha o luto por meio de um reencontro amoroso que tapa o buraco deixado pelo objeto que ocupava esse lugar, mas que se foi. 

O desenvolvimento da relação dela com seu futuro namorado é a grande narrativa lírica do enredo, em contraposição ao aspecto trágico que paira na atmosfera da trama de seu irmão. O diretor, com isso, guarda o melhor para o fim, criando cenas apaixonantes, cheias de entusiasmo e arrebatamento. Veja: se no primeiro enredo o lirismo é rompido pela tragédia, no segundo, o lirismo não é interrompido pela desdita, mas ambos os aspectos misturam-se e se entrelaçam, comovendo profundamente numa linha emotiva muito mas muito bem trabalhada, em cuja finalidade retórica de mover com quem está do outro lado da tela funciona de modo brilhante. 

A A24 volta numa estética semelhante a Moonlight: Sob a Luz do Luar, também lidando com a água como símbolo transicional por meio da narrativa de amadurecimento. Sensível e visualmente magnífico, o avassalador Waves não nos poupa no início, tampouco no fechamento do arco dramático, que é concluído com um clima supostamente arejado depois de pesar a mão durante duas horas num enredo que te aprisiona emocionalmente, mas que te leva a sair maravilhado da experiência. 

As Ondas (Waves, EUA, 2019)
Direção: Trey Edward Shults
Roteiro: Trey Edward Shults
Elenco: Kelvin Harrison Jr., Lucas Hedges, Taylor Russell, Alexa Demie, Renée Elise Goldsberry, Sterling K. Brown, Clifton Collins Jr., Neal Huff, Harmony Korine, Bill Wise, David Garelik, Ruben E. A. Brown
Duração: 136 min.

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