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Crítica | As Órbitas da Água

por Davi Lima
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Em As Órbitas da Água muito se fala de abismos inter-relacionais humanos, em que casamentos não estão unidos nem mesmo no mesmo plano gravado, ou cada cônjuge busca tensões sexuais individualmente. Nesse sentido, o diretor Frederico Machado trabalha a introdução de seu filme, chamada como primeira parte de As Órbitas da Água, sem muitas palavras, apenas com imagem e som todo seu trabalho narrativo de expressar a chegada de um casal na vila de pescadores. Com uma decupagem muito expressiva na escolha de planos e uma montagem alinhada ao som intenso, Machado entrega seu drama ambientado em natureza aquática de sexualidade fluida, mas simultaneamente de muito desapego humano. 

No entanto, todo seu desenvolvimento inicial de corpos em desconexão genuinamente emocional, ou espiritual, com uma narração em off que introduz parâmetros religiosos culturais de conflito e inspiração para paralelos com a obra, é esvaziada quanto mais concreta as metáforas e os diálogos realistas vão sendo implementadas. São as pontes mais palpáveis que são apresentadas para efetivar uma dimensão familiar e religiosa, mas fragiliza-se o processo conclusivo da incompreensão do sagrado. Durante todo o longa há muitos símbolos religiosos que surgem precisamente na história, seja num interlúdio com narração, que aparece uma Bíblia e uma cruz, ou como a imagem de Jesus na cruz é enfatizada pela câmera após algum sonho, ou uma conversa determinante para o filme. Essa sujeição a tais símbolos vão montando linhas distintas de recepção ao que se acontece na dinâmica do casal formado pelo Forasteiro e a Mulher Misteriosa interpretados por Antonio Saboia e Rejane Arruda, com o outro casal do Pescador e sua esposa solitária Maria, interpretados por Flávia Bittencourt e Auro Juriciê. 

A primeira linha se depreende em como o primeiro casal funciona como mantra de tentação sexual, ao mesmo tempo que se juntam para algum objetivo misterioso, quebrando a lei matrimonial daquela região de casais distantes em corpos e que experimentam a sexualidade das partes deles. A narração em off evidencia isso, em que em primeira instância o espectro religioso mantinham os seres da região de pescadores colocados sobre uma aparente religiosa, que apenas a areia e a água podiam receber a expurgação de fluídos sexuais, ou até a morte na quebra de matrimônio. Por isso o segundo ato denominado O Lodo, quando se revela mais didaticamente o tom simbólico que um sonho sexual do filho do Pescador revela o futuro, é a sujeira revelada por debaixo da lei, em que o mistério vai se revelando nas determinações descobertas das dimensões familiares entre o Forasteiro e o Pescador. Nessa linha narrativa, quanto mais se incita a se revelar em verbos, mais a imagem que mostrava a relação de irmandade entre os dois homens se torna redundante como também ambígua para as definições posteriores do filme, como uma descontinuidade em meio às concretizações inter-relacionais.

Na segunda linha que advém desses símbolos é a solidão da graça que torna repulsiva a depravação, a dimensão religiosa que orbita como uma auréola fina e líquida que se centraliza em Maria, a mulher solitária do Pescador com nome simbólico da mesma maneira. Ela é a personagem que reage às escondidas a reza da Mulher Misteriosa, que repreende a dança sensual que não seja com seu marido, e se mantém fiel ao matrimônio. Sua imaginação sexual é isolada, guardada na sua mente e no fogo da cozinha, é a personagem que se mantém forte dramaticamente em meio a tradição religiosa. Em questões de termos dessa tradição, ela representa uma graça em meio a incompreensão da propostas divinas dos símbolos. 

Como um todo o filme trata de um meio fragilizado, em que no filme a fotografia quando une dois personagens no mesmo plano os atores se palpam sempre com intensidade em meio ao reflexo do desapego humano, torna-se difícil julgar a emotividade desses anseios de união, mesmo que quebrem leis matrimoniais. Por isso Maria é solitária, não por seu julgamento, mas por ser a resposta repulsiva genuína dentro do filme, em que é complacente no espiral de violência que o filme vai revelando, a única que se mantém repreensiva a ilógica moral não só do filme, mas na maneira como ele vai se esvaziando em sentimentos no colocar de mais realismo. Se antes tudo surgia da imagem e som com ar interpretativo, com os diálogos uma história familiar vai se amarrando, surgindo conclusões pouco explicativas que vão esvaziando o trabalho formal audiovisual inicial, mas ainda com dependência da inspiração sensorial da introdução do filme para permanecer ativa metáforas concretas subsequentes. 

Assim, vai se normalizando termos religiosos de sacrifícios humanos na representação também religiosa, ao mesmo tempo que o matrimônio destrinchado como consequência da ausência masculina e de sua voz. O grande paralelo que pode ser feito é com a história do filho pródigo de maneira reversa. O pai, interpretado por Tácito Borralho, chama o Forasteiro, o irmão Pescador é conivente com uma missão sacrificial, e no processo busca-se quebrar a lei religiosa e tradicional para libertar, render o vilarejo da espiritualidade que trazia o pecado aos olhos sociais. Assim, as órbitas aquáticas, ou os bolsões frágeis de matrimônios que uniam corpos podem agora usufruir de um renovo. É a matança de uma lei pela incompreensão religiosa da graça. 

Maria no filme é o efeito sintomático da graça que supre a lei na história, escrava de uma justiça que só ela compreendia, enquanto a justiça que o vilarejo ansiava era o inferno do prazer em legislação. A conclusão que o diretor trabalha com o público não equivale ao certo e o errado, e sim volta às internalizações humanas, em que por baixo da lei o pecado sexual e o distanciamento de corpos era a representação natural, mas sem ela os seres perdem seus abismos entre si pelo assassinato. Enquanto no tratamento da graça, o prazer solitário da Maria, como mulher do Pescador, já era dependente apenas dela, em que num diálogo determina que conhecia que seu isolamento também era frágil, que a incomodava os sons do mar, mas sabia que outros o amavam. No entanto, seu marido só compreendia a lei, em que o ser solitário que ele mesmo criava pela presença do filho não compreendia o sagrado, ficando calado e concretizando imutabilidade do abismo inter-relacional com Maria por não enxergar mais  virgindade da esposa.

Por fim, entre a graça e a lei, o último ato chamado As Órbitas denota a incapacidade humana de se satisfazer com seus conjuntos relacionais humanos, quebrando leis, buscando mudanças culturais, ou fugindo de terras para tentar se contentar. O filme que fala muito de desamor consegue captar muitos afetos, porém todos colocados numa concepção imoral para o filme, mesmo que nas cenas tais julgamentos se coloquem as margens, nas imagens seguintes em consequência, de remorso do pecado. O dissabor expresso nesse longa-metragem é constante, primeiro pelo caminhar da obra em esvaziar-se de seu trabalho audiovisual na criação de abismos inter-relacionais, sem desmanchá-los como proposta de sua história. 

Na sua conclusão em honestidade empreende uma mesma noção incompleta de resposta de anseios, que na sua narrativa anula-se a lei tradicional religiosa, mas se conhece a existência da graça como efeito de superá-la, por meios dos símbolos cristãos. Em geral, não é um filme essencialmente religioso, mas abre portas para interpretações desse meio, principalmente a partir da sexualidade, que no errôneo senso comum é um tema pouco tratado nos textos religiosos cristãos. Porém, isso só reflete a incompreensão religiosa de um vilarejo, pois quando centra-se o drama na repulsa de uma Maria solitária e quebrada na imagem de um espelho, representa o sofrimento pelo desejo dela aproximação pela graça, quando muitos só seguem a lei quando ela já não existe, ou a quebram para não haver submissão que a graça ensina, e infelizmente não é compreendida.

As Órbitas da Água (As Órbitas da Água) – Brasil, 2020
Direção: Frederico Machado
Roteiro: Frederico Machado
Elenco: Antonio Saboia, Rejane Arruda, Auro Juriciê
Duração: 71 min.

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