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Crítica | As Surpreendentes Aventuras do Barão de Munchausen, de Rudolph Erich Raspe

por Kevin Rick
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Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen (1720-1797) foi um verdadeiro barão e militar alemão que lutou pelo Império Russo na guerra russo-turca (1735-1739) contra o Império Otomano. O nobre alemão se tornou uma celebridade no meio aristocrático ao retornar para casa e contar histórias exageradas das suas campanhas militares. Dentre os ouvintes estava o bibliotecário Rudolf Erich Raspe, que se apropriou dos relatos hiperbólicos de von Münchhausen e criou dezessete contos de fantas… verídicos, como a obra continuamente pontua, em torno das viagens e descobertas do protagonista baseado na figura do descomedido militar alemão.

O sucesso das histórias publicadas por Raspe em 1785 tomaram conta da Europa do século XIX, especialmente a Inglaterra. Como tal, novos episódios da jornada fantástica do Barão de Munchausen surgiram por vários escritores, e ao longo dos séculos múltiplas versões de contos, compilados e livros foram lançados em torno deste personagem que alcançou o panteão do imaginário coletivo e da historiografia literária. Exatamente por esta pluralidade autoral que a versão lida para esta crítica, As Surpreendentes Aventuras do Barão de Munchausen em XXXIV Capítulos, contém o crédito de “escrita por Rudolf Erich Raspe (com a ajuda de nobres cavalheiros)”, além de ser traduzida por Claudio Alves Marcondes e contar com belíssimas ilustrações de Rafael Coutinho que colaboram para a pegada infanto-juvenil do livro.

Acredito que o fato dos contos ficcionalizados do Barão de Munchausen serem produzidos por múltiplos escritores – a obra nem sequer especifica em muitos detalhes a questão da autoria – não retira a identidade de Raspe, e na verdade funciona na proposta inicial do escritor: utilizar histórias exageradas de outra pessoa e torná-las ainda mais absurdas com o toque de inventividade fantasiosa que carrega a deliciosa leitura da obra. O exagero cômico é a lei da prosa narrativa e descritiva dos eventos fantásticos do Barão, contando com ilhas de queijo e leite, viagens à Lua, cavalos que cabem no bolso e que continuam vivos após serem cortados ao meio, navios içados por balões, e por aí vai.

O curioso do tom de humor dos contos está na maneira como é construído em torno de uma seriedade irônica, no qual a narração de Munchausen continuamente preza pela veracidade e confronta o leitor a duvidar dos relatos absurdos. Poucas vezes eu me diverti tanto em literatura cômica como aqui, pois, em primeiro lugar, a criatividade detalhista das várias aventuras é desenvolvida em prol da verdade (mentira) e não da fantasia, logo, a prosa retira, de certa forma, a ficção, e mantém uma espécie de procura pelo realismo no relato, quase uma crônica, o que não faz qualquer sentido ao pensarmos no teor de exagero das histórias, e assim o autor concebe um estilo de diálogo com o leitor, como se estivéssemos ouvindo as mentiras de um pescador ou conversando com aquele amigo que aumenta os acontecimentos, só que a mentira acontece em torno de fábulas grandiosas e charmosas, e um certo vínculo é criado com o leitor de procurar acreditar no fantástico, e aí entra o pezinho infanto-juvenil deslumbrante da  narrativa, como também as risadas de doer a barriga quando o exagero passa dos limites da imaginação – e ele sempre passa!

Isso é melhor visto nos primeiros vinte contos do livro, que são desenvolvidos em uma estrutura de leitura rápida e de punch line. A experiência até cai numa forma de rotina, e digo isso positivamente, com cada conto sendo um mergulho em uma nova aventura absurda e ficamos esperando a punch line cômica na narrativa, como quando o Barão de Munchausen derruba um urso com as próprias mãos, descobre a biblioteca de Alexandria ou então tem suas sobrancelhas chamuscadas pelo sol. Dito isso, a segunda parte do livro assume uma grande aventura em torno da partida do Barão à África até seu retorno à Inglaterra, e justamente na falta da estrutura episódica que o livro perde força para mim, pois o exagero da aventura é estendido para uma única viagem e o relato ganha complexidade ao exagero, e isso retira o estilo cômico direto, assumindo uma proposta de narrativa objetiva alongada que a prosa não tem qualidade para desenvolver como uma jornada fantasiosa, e o fator de contenção sai de cena para trazer uma leitura sem consistência no absurdo, sendo um exagero pelo exagero sem a pegada irônica e até mesmo tornando-se uma experiência enfadonha com a confusão narrativa.

Contudo, é bacana notar, especialmente na segunda metade, os diferentes elementos de grande valor histórico de As Aventuras do Barão de Munchausen, desde o pano de fundo satírico à sociedade europeia da época, como algumas críticas à escravidão – tem um trecho poderoso em que o Barão encontra “escravos brancos” -, e também ao poder da Igreja como a derrota dos espíritos de Voltaire, Rousseau e Beelzbub – isso mesmo que você leu, em uma crítica bacana à intolerância religiosa -, além de vários comentários a maneira que as expedições europeias chegavam em continentes africanos e asiáticos destruindo, roubando e enganando os nativos, sem falar do preconceito com costumes locais. A segunda metade é realmente corajosa com a sátira, e é muito interessante como a prosa dilui tudo isso em uma narrativa descompromissada que é preciso olhar com atenção para ver as críticas nos detalhes, mas, infelizmente, a diferença estrutural da aventura quebrou grande parte do meu divertimento inicial com a obra, ainda que se distancie bastante de ser ruim.

As Surpreendentes Aventuras do Barão de Munchausen é um livro para todas as idades, utilizando referências e bebendo de elementos de mitologias (grega, nórdica, africana, indiana), folclores europeus e africanos, a própria literatura que veio antes, como na divertida aparição de Dom Quixote – que faz todo sentido! -, além do conto de fadas militar que Raspe situa a jornada do Barão, cheio de sátiras políticas. Ademais, é interessante ver como a obra criou ou pelo menos popularizou grandes convenções ou momentos fantasiosos famosos, como personagens dentro de animais – antes de Pinóquio – ou então quando o Barão voa com uma bala de canhão – vemos isso incessantemente em cartoons clássicos, especialmente da Looney Tunes. Só que, acima de tudo, o exagerado e charmoso Barão de Munchausen narra contos sobre a diversão do absurdo e da falta de racionalização necessária para mergulhar no fantástico e se deslumbrar com culturas lunares, ilhas de queijo e leite, mares de vinho, viagem ao centro da terra e dezenas de relatos divertidíssimos de um personagem clássico.

As Surpreendentes Aventuras do Barão de Munchausen: Em XXXIV Capítulos (The Adventures of Baron Münchausen) — Inglaterra, 1785
Autor: Rudolph Erich Raspe
Edição lida para esta crítica: Editora SESI-SP; 1ª edição (26 junho 2018)
Tradução: Claudio Alves Marcondes
208 páginas

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