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Crítica | As Tentações do Doutor Antônio (Boccaccio ’70)

por Luiz Santiago
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Dirigido por Federico Fellini entre duas de suas grandes obras-primas (A Doce Vida e Oito e Meio), As Tentações do Doutor Antônio é um dos curtas que fazem parte do projeto Boccaccio ’70, dividindo espaço com projetos assinados por Mario Monicelli, Luchino Visconti e Vittorio De Sica.

O curta-metragem é uma “comédia à italiana”: hilária reflexão que ao mesmo tempo expõe o lado da angústia, da loucura e do medo que eventualmente atormentam as pessoas. Embebida num contexto social específico, esse tipo de comédia aqui trabalhada por Fellini e seus roteiristas logra trazer para o espectador uma experiência adicional, particular, que nesse caso é a crítica ao pudor extremo e de cunho religioso, fruto de visíveis complicações psicológicas que marcam para sempre a vida do Doutor Antônio (Peppino De Filippo, numa fantástica interpretação).

Pela primeira vez Fellini usou um conteúdo sexual ligado a valores religiosos em um filme, uma crítica que ele faria à igreja diversas vezes a partir de então, a começar de Oito e Meio, seu longa-metragem seguinte. Embora a autoridade religiosa ou mesmo a devoção tivessem aparecido em filmes anteriores do diretor, é em As Tentações do Doutor Antônio que elas surgem envoltas em ironia e dentro de um contexto onírico, mais uma das características recorrentes na obra posterior do cineasta.

O argumento é engenhoso desde o início, porque mostra que a tentação (e nesse caso, já fazemos a relação com uma força demoníaca) é na verdade uma criancinha vestida de anjo e que aparece a maior parte das vezes em situações que jamais atribuiríamos à antítese da ideia de pecado, e é muito importante pensarmos nesses termos, porque o pecado, aqui, é realmente uma ideia absorvida durante os anos e acalentada por possíveis condições psíquicas/sentimentais/sociais do Doutor em questão: fanatismo religioso, Complexo de Édipo, misoginia, homossexualidade, repressão social, fetiches, loucura…

Aparentemente trata-se de um personagem bastante simples, mas no decorrer do filme, percebemos a sua complexidade e o modo notável como o roteiro dá voz a cada uma dessas fases, que se apresentam de maneira sutil, o que é bastante admirável dado o pequeno tempo de duração da obra. Além disso, vemos conceitos/sentimentos/pulsões do protagonista serem desconstruídos e reconstruídos no decorrer da projeção. O Doutor Antônio luta contra tudo aquilo que ele era ou se achava contra, mas no final se deixa seduzir, mesmo que por um curtíssimo espaço de tempo.

Anita Ekberg personifica grandiosamente a femme fatale do pesadelo do Doutor, e não apenas isso, ela também dá corpo uma parte do conceito de “mulher felliniana” que veríamos desfilar nos longas do cineasta daí em diante — e que víramos como prévia em A Doce Vida, lançado dois anos antes desse curta. Essa parte do conceito traz mulheres de belos rostos, penteados estilosos, um toque marcante de maquiagem, belo figurino e seios fartos, além de atributos corporais que geralmente marcam a genérica preferência do homem latino de meados do século XX para as mulheres. Perceba que esse mesmo modelo feminino já pode ser visto em Oito e Meio ou Toby Dammit, assim como o seu lado oposto de beleza, tendo como exemplo a Saraghina de Oito e Meio, que mesmo não sendo bela, traz os grande seios, atributo central das matronas fellinianas.

Por fim, o Doutor Antônio não consegue lidar com tanta informação, mudança, renúncia, aceitação e luta em tão pouco tempo. Ele tenta fugir de algo pelo qual se sente atraído (será mesmo?) e essa fuga esbarra na imagem social que ele construiu para si: o defensor da pureza e do decoro para o “cidadão de bem“. A única fuga que realmente lhe trará paz é a loucura. Ele enfim se vê livre para amar e desejar sem ter medo ou se sentir culpado e atormentado pelas ameaças de arder no inferno. Suas tentações deixaram de ser algo a se reprimir para se tornarem algo a saudável a se fazer, exatamente como dava a entender o metafórico jingle do cartaz que desencadeou a sua metamorfose: Beba mais leite.

  • Crítica originalmente publicada em 19 de novembro de 2013. Revisada para republicação em 16/03/2020, como parte da versão definitiva do Especial Federico Fellini aqui no Plano Crítico.

Boccaccio’70: As Tentações do Dr. Antônio (Boccaccio ’70: Le tentazioni del dottor Antonio, Itália/França, 1962)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Goffredo Parise, Tullio Pinelli, Brunello Rondi
Elenco: Anita Ekberg, Peppino De Filippo
Duração: 50 min.

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